Babaca 0 986

postado por Rafaé.

Sentado ali, no meio fio, não tinha noção de quanto tempo se passara. A visão era embaralhada, fora de foco, e a musa (ou não) ainda lá, parada. Imaginou-se indo até ela, tentando um primeiro contato: “e aí, vai pegar qual ônibus?”. Não. Não era uma boa idéia. Com certeza não conseguiria caminhar sobre a reta que os unia. Em meio a essa indecisão, foi dominado por uma tremenda ânsia. Parou, respirou, e foi. Logo foi vencido pelo desejo incontido de seu corpo: o de permanecer na horizontal. Caiu a menos de dois metros do amor eterno. Vomitou, praguejou e dormiu ali, sem a musa, sem conforto e com uma certeza: tubão é foda!

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Desespero.app 0 1204

Ffo

Passei boa parte da minha vida transformando a realidade em sonhos, e, não demorou muito para isso se converter em um pesadelo. O desejo de fazer de tudo me guiou ao nada. O primeiro emprego se foi, o segundo passou, do terceiro mal me lembro, o quarto acabou antes da experiência, mas a vida continuou. As oportunidades cada vez mais raras, as exigências mais estratosféricas e o dinheiro cada vez mais curto. A insurgência contra o mercado formal de trabalho foi natural, até porque, foi ele quem se rebelou antes contra a minha pessoa.

 

A internet em casa foi cortada, tinha o dinheiro contado para pagar a conta, mas não sou de entregar os pontos tão facilmente. Assumi o risco, outra vez; fui num bar no centro, tomar umas e usar o wi-fi. A cena é trágica, sozinho numa mesa para oito, o celular ao alcance de uma mão, o copo próximo a outra e a página do jornal com as oportunidades de emprego sob os cotovelos. Já me convencia de que ser frentista noturno não era a pior ideia do mundo (sim, minhas insurgências sempre duraram pouco), quando resolvi virar as páginas do jornal. Já que havia gastado quatro reais nisso, porque não consumir aquele conteúdo duvidoso? Pedi outra cerveja de cereais não maltados, igualmente duvidosos, para brindar minha série de péssimas escolhas.

 

A coluna de economia abrigava o retrato de um jovem empresário, bem mais jovem que eu – “Mais uma cerveja, por favor”. – os dentes perfeitamente alinhados, certamente mais brancos que o papel jornal, a estrutura física de um boxeador e o semblante de um galã de novela – “Traz uma dose de vodka também. Isso, a mais barata” – que filho da puta. Descanso o copo sobre a foto, sei que vai doer ler a matéria, mas não me resta muita alternativa. Mais um daqueles donos de startups, que teve alguma grande ideia inovadora (bocejo longo) e recebeu incentivo de algum gringo desocupado. Já nas primeiras linhas confirmo que o clichê do nosso tempo já estava formado, o cidadão ganhou dinheiro desenvolvendo um aplicativo. Quantos aplicativos cabem num celular hoje em dia? E quantos cabem na nossa vida? Caralho, por que diabos um cara que fez um aplicativo chamado Happy Puppy está estampado no jornal? A urgência de esvaziar a bexiga se aliou à de esvaziar a mente. Pedi um Minister solto quando voltei do banheiro, nada como um cigarro de quarenta centavos para organizar a bagunça mental.

 

De volta à mesa, tiro meu copo de cima do nosso empresário, a foto nem borrou direito, que sujeitinho impertinente. Não queria mais ler, mas não respeito mais minhas vontades. Acho que preciso voltar a frequentar um psicólogo. Os olhos voltam a seguir as linhas do jornal. Que fofo, você se cadastra no aplicativo e se candidata a levar cachorros de madame para passear. Que tipo de gringo investe nisso? Vou fazer um aplicativo para gringos selecionarem as piores ideias para se investir dinheiro, acho que é a única chance que tenho de ficar rico. O depoimento da dona Ludmila chega a ser comovente: agora que seu Shih Tzu passeia quatro vezes por semana, está muito mais disposto e até mesmo sorridente. Não pode ser, devo ter comprado uma edição impressa do Sensacionalista, só isso explica. Vamos ao depoimento do Rômulo, um exemplar passeador de cães: “Eu sempre amei os animais, cursei jornalismo, mas queria ter cursado veterinária. Meu apartamento é pequeno, não posso ter cachorros lá, mas agora é como se eu tivesse vários. A gente realmente se apega aos bichinhos que a gente leva para passear. Fora a ajuda que dá, né? Mês passado o aplicativo me rendeu mil e oitocentos reais.” Chega, já passou do ponto, faz tempo. Vai que algum bom trampo passou batido na coluna de empregos? Melhor conferir antes da próxima dose.

 

Será que rola ler algum livro entre um abastecimento e outro? Nunca vi nenhum frentista com um livro debaixo do braço. Na verdade é cena cada vez mais rara de se ver, em qualquer lugar. Sendo chapeiro numa lanchonete com certeza não dá pra ler, mas diz que o salário pode até ser maior em alguns meses, porque tem a divisão da caixinha dos funcionários. Sei lá. Às vezes dá pra pelo menos ouvir uma música no fone. Acho que como frentista não tem como. Não faço ideia de qual profissão vai me oferecer mais monotonia, de qualquer forma, estou bêbado demais para tomar qualquer decisão prudente. Vendo por esse ponto de vista, devo estar bêbado já fazem uns seis anos. Que merda! Bom, amanhã é um novo dia, sobrou um troco para pôr um crédito no celular, pra ligar no posto e na lanchonete. Eu só queria é ganhar um pouco de dinheiro fazendo nada, tipo observando pássaros ou jogando pão pros peixes. Ou passeando com cachorros? Qual o nome do aplicativo mesmo? Já abracei o capeta tantas vezes que não estranharia se ele me desse um beijo.

 

Gabriel Protski

Domingo 2 957

Final de turno é uma bosta, porque eu moro longe do ponto que me deixam depois do trabalho, e eu não tô gostando desse cobrador que colocaram pra trabalhar comigo. Nego filho da puta. Ele não fala muito, e isso está me incomodando. Ele fica aí com essa cara de sono, olhando o celular de cinco em cinco minutos.

E, nessa hora ainda, domingo, sempre entra algum loucão idiota que tenta não pagar passagem, que quer gritar pra descer no meio de alguma quadra, fora do ponto, que fica riscando os vidros com pedrinha pra emporcalhar o ônibus, que fica ouvindo música alta, querendo se aparecer para os amigos, agitando ou fazendo alguma outra merda qualquer. Por que não ficam quietos? Por que não sentam e calam a boca, pagam a passagem, andam um pouco, apertam o botão e descem no ponto deles, no inferno que seja?

Agora tá aí, esse puto, no penúltimo banco. Ele tá maluco, com certeza. Entrou no terminal, e nem olhei pra cara dele direito, mas é claro que ele tá maluco. A molecada de hoje em dia tá muito doida. No meu tempo não era assim não. Não tinha toda essa merda na rua, esse bando de traficante, esses caras nas esquinas do centro. Antes eu ia pro centro e andava na XV com a minha mãe qualquer hora, não que a gente fizesse muito, mas agora não vou mais à noite, porque tem muito pedreiro, e tem muito bandido, e muita puta, e muito lixo de gente andando pra lá e pra cá. E tem muita morte também. De vez em quando amassam a cabeça de alguém com uma pedra, dão uma facada na barriga de algum imbecil que não quer passar a porra do celular no assalto, dão tiro em travesti, é uma merda. Eu não aguento mais. Não consigo entender o lixo, e não consigo mais entender a rua XV. No meu tempo não era assim. Não era, não era. Até meu sobrinho tá andando com uns moleques de merda da vila, pixando no centro, fazendo cagada. Molecada é foda. No meu tempo que era bom. Que merda. Tô ficando velho e sem paciência, como a minha mãe sempre disse que eu seria um dia.

E esse filho da puta do fiscal do meu lado, me cobrando porque atrasei pra chegar no terminal. Mas o fiscal nunca sabe de nada. Ele acha que é fácil andar nesse fim de mundo esburacado, pegar congestionamento por causa do jogo de futebol no estádio. Não é fácil. No meu tempo os fiscais não eram assim. Acho que os chefes estão ficando cada vez piores. Ele grita comigo no terminal, na frente de todo mundo, e agora senta do meu lado e finge que é meu amigo. Odeio esse cara. Odeio esse cobrador também. Pelo menos esse fiscal filho da puta, que vai mandar descontar o atraso do meu pagamento, fica falando e não preciso ouvir o silêncio desse cobrador filho da puta. O cara está trabalhando comigo há duas semanas, e não lembro direito o nome dele. Qualquer coisa falo oh, piá, e ele responde, então está bom assim.

Aquele cara lá atrás vai vomitar. Eu tô vendo tudo. Já vi essa cena antes, ontem inclusive. É sempre assim. O cara ou a menina abaixa, e começa a vomitar. É coisa feia. E o cara é novo, e tá passando mal, e passando vergonha. Que merda.

No meu tempo a molecada jogava bola na rua. Soltava pião. Corria. Brincava de esconde-esconde. Brincava de pega-pega. Invadia terreno pra roubar fruta do pé. Corria de carrinho de rolimã, que era um sacrifício pra fazer. Agora a criançada rouba a moto do pai e sai voando pela vizinhança. Agora a criançada engravida, cheira cola, fuma crack, rouba a mãe, mata o vizinho, estupra, vai preso, toma uns tapas e já sai na outra manhã, e volta pra casa. E vai pra escola e não respeita professor, e grita na sala, e arranja briga na saída, e acham que são brigadores, que podem, que fazem, que acontecem. No meu tempo não era assim, e era bem melhor antes. Tudo mal educado. Televisão demais. Computador demais. Celular de R$ 2.000,00 demais. Respeito de menos.

O fiscal me pergunta como foi o dia, e não gosta de eu responder que foi uma bosta, sem entrar muito no assunto. Ele disse ah, é? E eu disse pois é. Foda-se. Não gosto dele, não vou fingir que gosto. O mundo de hoje tem muita mentira. E tem aquele filho da puta lá atrás, e eu tenho certeza que ele vai vomitar, mas ele acha que eu não tô vendo, mas claro que eu estou, que eu não sou cego e nem idiota. Ele aperta o botão para descer pouco antes de uma esquina em que vou virar, e levanta para ficar perto da porta. Quando termino a curva, vejo que o vômito escorreu no chão do ônibus, de um lado para o outro. Que merda.

O cara agradece a gente gritando meio bêbado, e confirmo minha ideia sobre ele. Eu não me engano. Esse cara está mais louco que eu no ano novo. Ele desce do ônibus e vai embora, para o inferno que seja.

Marco Antonio Santos