Seus Olhos Cortaram a Garganta De Tudo Que Eu Conheço* 4 693

Postado por Marco Antonio – The Master Of Disaster

O preço do estacionamento era caro, mas o senhor Z. acreditava que possuía um bom motivo para deixar o carro dentro do shopping, e não na rua. Cada qual com suas razões. Havia uma promoção de cuecas em uma loja da moda, o que quer que o conceito “loja da moda” signifique. Válida tanto para os modelos chamados tradicionais, quanto para as boxer.

– Oi, tudo bem? Eu quero dar uma olhada nas cuecas, por favor. Nessas da promoção.

Olhou. Em seu critério pessoal fez bom uso daqueles vinte e oito minutos. Encontrou algumas de que gostou, ainda que seja estranho constatar que alguém se ocupa verdadeiramente em pensar em demasia sobre cuecas.

Aproximou-se da bonita e simpática vendedora. Ela fingia desatenção. Disse o senhor:

– Eu gostei dessas seis aqui. Vou querer duas de cada.

– Tudo bem, senhor. Qual vai ser a forma de pagamento, por favor?

– Vou passar no cartão de débito.

– Tudo bem. Então me acompanhe, que a Samara já passa para o senhor.

– Tá bom. Mas antes eu vou pedir mais uma gentileza. Você verifica no estoque se vocês tem esses modelos em tamanho EPIC, por favor? Que aqui em baixo eu só encontrei até tamanho GG, e GG pra mim não dá.

Um dos poucos problemas em comprar roupas íntimas é o fato de que o cliente não pode experimentar o produto antes de levá-lo para casa, como se faz comumente com camisetas, calças e mesmo carros. Espera-se que o consumidor tenha ciência das próprias medidas, economizando assim o tempo e a paciência dos vendedores e vendedoras . Natural, como é natural usar limões para fazer limonada.

– EPIC, senhor? Eu vou ali em cima dar uma olhada. Não garanto que a gente tenha, mas vou verificar. Só um minutinho.

– Claro. Fica tranquila. Duas de cada, tá?

E Estela subiu a escadaria, rumo ao estoque. Solícita, como sempre. A subserviência, o cumprir o papel ao qual se submetia como vendedora a obrigava a procurar o que obviamente não existia. Cuecas tamanho EPIC? Que palhaçada era esta, agora? O cliente nem gordo era, o que talvez justificaria o excêntrico pedido. Seria aquela alguma bizarra piada sexual velada? Assédio? Bem, talvez o senhor tivesse, de fato, sido agraciado pela natureza, mas, EPIC? Não. Isto não existia nem no estoque, nem em qualquer outro lugar no mundo. Era apenas a segunda semana como funcionária desta loja, portanto, melhor procurar muito bem que se indispor e desapontar sua chefe, que assistia a cena com os olhares inquisidores necessários para manter a ordem no estabelecimento. De soslai0, sim, porém completamente conectada ao momento.

Claro que no quesito pedidos estranhos, sobrevivia na mente de Estela a lembrança do homem que pedira banana à milanesa com chantilly, raspas de limão, açucar cristal polvilhado e molho bechamel, quando ela era garçonete de uma lanchonete na rodoviária de Maringá. Mas desta vez era diferente. O olhar intenso do homem que estava lá em baixo esperando suas hipoteticamente existentes cuecas, faltava ao senhor da lanchonete. O que significava aquilo?

Será que é normal entre os homens de meia idade o gosto pelo estranh0, ou a preferência pelo raro? Seria esta uma forma de forjar sentido para a vida, esta coisa de passar pelo maior número de experiências possíveis? Certo era que seu pai nunca fora afeito à excentricidades quando tinha seus cinquenta e tantos anos. Então não era isso. A idade ou o gênero sexual nada tinham a ver com a resposta que procurava. Mas, sabia ela, raramente a resposta das coisas está no mesmo lugar das perguntas.

E, caixa após caixa, procurava por cuecas e soluções. Dez minutos. Quinze.

Desceu para anunciar o resultado da(s) busca(s), mas o senhor havia ido embora.

*tradução livre de trecho de “Silhouette”, do Thrice

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Distante das Linhas de Nazca 0 1269

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1198

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski