O tempo do meu ser 1 606

postado por Rafaé, o arquipélago.

Hoje acordei e senti: seria diferente. As vontades que deixei passar, hoje seriam vividas. Como fosse o último dia de minha vida, hoje aconteceria tudo o que preciso para existir. Café da manhã reforçado, um passo de cada vez; pois hoje existirá.

Perfume de sexta-a-noite em plena segunda-de-manhã, pois hoje existirá.

Um bom dia sorridente a todos os vizinhos, porque já não me importa que este seja o último; pois hoje existirá.

Um dia especial como outro qualquer. Adentro ao ônibus quase lotado, onde o cheiro do primeiro banho predomina. Os olhares penetram o horizonte, que não tardará a chegar; pois hoje existirá.

O café recém passado na esquina, o bom dia cativante. Um time que ganhou, o outro que perdeu. Felicidades e tristezas que se misturam, embebidas em esperança, prometem um novo dia; pois hoje existirá.

Dentro do meu monitor, um universo que se reinventou. Você que cortou o cabelo, você que perdeu a dignidade, você que falou por falar. Mas isso não importa, já passou; pois hoje existirá.

Passo o dia reinventando o ontem, idealizando o amanhã. O agora não passa de um cumprimento de obrigações. Não me preocupo; pois hoje existirá.

A escuridão começa a raiar seus negros tentáculos no horizonte, tão longe daqui, do décimo andar. (Queria poder compartilhar contigo: o alaranjado-lilás que conquista o azul e enegrece os prédios). Uns minutos a mais de procrastinação, e outro dia estará vencido. Um dia a menos para sexta-a-noite-que-tanto-promete. E da segunda-feira resta a noite onde as surpresas residem; pois hoje existirá.

Agora, nada mais de obrigações, apenas prazeres. Duas ou oito cervejas que me dão o prazer de voltar pra casa. Nenhuma preocupação; pois hoje existiu.

Volto pra casa no mesmo ônibus, com as mesmas pessoas. Os sulcos cavados pelo tempo em sua testa revelam o esforço que lhe foi necessário para que este dia fosse abatido. Seu olhar caído, que não enxerga nada além do reflexo no vidro, revela o quanto lhe custa a vontade de viver, de sentir. Mas nada que justifique desânimo; pois amanhã existirá.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1269

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1202

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski