No dia em que abriu os olhos não a via mais 3 617

postado por Rafaé, o mosqueteiro.

Cosme andava tão sem graça que nem mesmo um dente de ouro traria brilho ao seu sorriso. Há tempos não se via forte, muito menos se orgulhava da sua sorte. Suas pequenas decepções cotidianas já não o incomodavam, porque afinal de contas a vida é mesmo assim. Pequenas tristezas sempre existirão. Cabe a nós reconhecer e colher as felicidades que se escondem por aí.

Parado ali, diante do espelho, Cosme mal enxerga seu reflexo, tamanho desânimo que o consome. Já não consegue manter seu olhar cruzado com o de mais ninguém, desde que desviou seus olhos de seu maior objetivo.

Mariana havia ficado para trás, sem ao menos saber que era parte fundamental para realização de planos e sonhos que Cosme tanto arquitetara em seu cotidiano-vazio.

No dia em que Mariana soubesse que era parte deste projeto de felicidade, sua vida ganharia um significado que só os que conheceram o amor reconheceriam. Dizem que só quem realmente viveu o amor compreende a grandeza de quem o carrega. Dizem coisas demais…

O fato é que Cosme abriu mão de conhecer o seu amor e veio embora protegido por uma desculpa qualquer. Desde que abandonou sua cidade, vem tentando se iludir a cada dia. Como se pagasse por pecados, Cosme sufoca sua vontade de Mariana enchendo-se de desgosto como quem tenta enterrar um buraco infinito.

Por um lapso de distração, Cosme acabou se reconhecendo ali, diante do espelho. O Cosme de outros tempos, que via no amanhã algo além de mais um hoje. Viu Mariana em seus olhos. “Talvez nós devêssemos dançar”. Não teve dúvidas, voltaria à sua cidade para admitir o grande amor que guardava para os dois; finalmente voltaria a existir e tomar para si a grandeza dos que conhecem o amor.

Correu para a rodoviária. Sem malas, sem preocupações. A partir de agora teria uma nova vida. Não precisaria mais de seu passado-quase-nulo.

Pegou o primeiro ônibus que conseguiu. Estava ansioso. Ninguém ali compreenderia a emergência de sua vida. Estava prestes a começar a viver. Chegou a esboçar um sorriso, enquanto olhava para o relógio e via que em menos de três horas daria início ao irreversível processo da felicidade.

Entrou no ônibus, sentou-se só, olhando pela janela como planejasse seus próximos passos. Carregava consigo um quase-sorriso, como nunca havia visto naquele rosto.

Jamais soube o desfecho desta história, Cosme jamais retornou. Não soube sequer se Mariana realmente existiu.

Sei apenas que ela o fazia viver.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1175

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1060

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski