Enquanto sua solidão existir, ninguém a perceberá 0 614

postado por Rafaé. beijos.

Nunca ouvi sua voz, mas posso senti-la falar entre estas linhas. Do bilhete em minhas mãos, chego ao seu sorriso – profissionalmente sincero.

Melina: do tipo de mulher com quem poucos se preocupariam. Suas qualidades não passam de eficiências cotidianas, cumpridas à risca. Também não alimenta desafetos. Seu único defeito: não possui imaginação, uma pontinha de imaginação sequer. Seus dias são recheados de timidez e tarefas burocráticas impecavelmente realizadas.

Em sua vida, tudo está sob controle (exceto, claro, o que seja questionado).

Orgulha-se de ser a responsável pelo almoxarifado de um respeitável escritório de advocacia em sua cidade. Traz em sua memória os lugares de cada objeto. De clips a papéis higiênicos (dos comuns aos especiais-perfumados-da-chefia).

Mas agora Melina deu pra reclamar; que sua vida é monótona, que nunca teve um amor – como se o amor fosse algo passivo de posse. “É sempre a mesma história: entramos com as lágrimas para que os outros sorriam”. A mesma história há trinta e um anos.

O sorriso-conformado-de-Melina a abandonara. Nas últimas semanas deixou de praticar suas pequenas vaidades. Como a de se arrumar em frente ao espelho e, na solidão de seu quarto, ensaiar a surpresa que demonstraria ao ouvir o seu primeiro “eu te amo” de seu eterno-novo-amor.

O espelho refletia pouco. Pois além da quase total ausência de expressão em Melina, no quarto havia apenas um colchão no chão, ao lado de uma cômoda adornada com um abajur e sua lâmpada eternamente queimada; roupas impecavelmente dobradas e organizadas em pilhas uniformemente distribuídas do outro lado; além das quinquilharias que ficavam por cima de sua penteadeira – típica de uma mulher que jamais levará suas vaidades para as ruas.

A luz fraca, amarelada, dava um tom entre a melancolia e a solidão às encenações de Melina em frente ao espelho. A cortina xadrez, em verde e branco, raramente era aberta, por uma certa indiferença aos vizinhos – que também não chegariam a lamentar uma possível falta sua.

Hoje, na noite do seu 31º aniversário, Milena decidiu que seria sua última. Sua última encenação. Abriu a cortina e se pôs à janela, encarando uma rua vazia. Via em cada casa luzes acesas, fortes. Sua luz fraca era vencida pela do poste na rua. Seu quarto foi tomado por um amarelo alaranjado.

Seu eterno-novo-amor jamais a conheceria. Não fingiria mais. Um almoxarifado organizado já não lhe bastava. Melina não seria mais. O que lhe restava era o nada. Um nada diferente do que havia sido. Um novo-nada.

E assim Melina tomou uma única e derradeira atitude que deu um novo rumo à sua vida. Nunca soube das consequências – se é que esperava algo. Um metro e meio de corda bastaram para ligar seus 31 anos à eternidade. Seus pés relaxaram a quatro palmos do chão.

Ela precisou de 31 anos – os exatos 31 anos de sua vida, minuto a minuto – pra chegar àquele instante, para se fortalecer e sentir-se mais poderosa que o seu próprio destino.

Sobre a penteadeira um bilhete sem data – que tenho em minhas mãos:

“só se vagueia só
pois dois
caminhariam juntos”

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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski