postado por Rafaé. beijos.
Nunca ouvi sua voz, mas posso senti-la falar entre estas linhas. Do bilhete em minhas mãos, chego ao seu sorriso – profissionalmente sincero.
Melina: do tipo de mulher com quem poucos se preocupariam. Suas qualidades não passam de eficiências cotidianas, cumpridas à risca. Também não alimenta desafetos. Seu único defeito: não possui imaginação, uma pontinha de imaginação sequer. Seus dias são recheados de timidez e tarefas burocráticas impecavelmente realizadas.
Em sua vida, tudo está sob controle (exceto, claro, o que seja questionado).
Orgulha-se de ser a responsável pelo almoxarifado de um respeitável escritório de advocacia em sua cidade. Traz em sua memória os lugares de cada objeto. De clips a papéis higiênicos (dos comuns aos especiais-perfumados-da-chefia).
Mas agora Melina deu pra reclamar; que sua vida é monótona, que nunca teve um amor – como se o amor fosse algo passivo de posse. “É sempre a mesma história: entramos com as lágrimas para que os outros sorriam”. A mesma história há trinta e um anos.
O sorriso-conformado-de-Melina a abandonara. Nas últimas semanas deixou de praticar suas pequenas vaidades. Como a de se arrumar em frente ao espelho e, na solidão de seu quarto, ensaiar a surpresa que demonstraria ao ouvir o seu primeiro “eu te amo” de seu eterno-novo-amor.
O espelho refletia pouco. Pois além da quase total ausência de expressão em Melina, no quarto havia apenas um colchão no chão, ao lado de uma cômoda adornada com um abajur e sua lâmpada eternamente queimada; roupas impecavelmente dobradas e organizadas em pilhas uniformemente distribuídas do outro lado; além das quinquilharias que ficavam por cima de sua penteadeira – típica de uma mulher que jamais levará suas vaidades para as ruas.
A luz fraca, amarelada, dava um tom entre a melancolia e a solidão às encenações de Melina em frente ao espelho. A cortina xadrez, em verde e branco, raramente era aberta, por uma certa indiferença aos vizinhos – que também não chegariam a lamentar uma possível falta sua.
Hoje, na noite do seu 31º aniversário, Milena decidiu que seria sua última. Sua última encenação. Abriu a cortina e se pôs à janela, encarando uma rua vazia. Via em cada casa luzes acesas, fortes. Sua luz fraca era vencida pela do poste na rua. Seu quarto foi tomado por um amarelo alaranjado.
Seu eterno-novo-amor jamais a conheceria. Não fingiria mais. Um almoxarifado organizado já não lhe bastava. Melina não seria mais. O que lhe restava era o nada. Um nada diferente do que havia sido. Um novo-nada.
E assim Melina tomou uma única e derradeira atitude que deu um novo rumo à sua vida. Nunca soube das consequências – se é que esperava algo. Um metro e meio de corda bastaram para ligar seus 31 anos à eternidade. Seus pés relaxaram a quatro palmos do chão.
Ela precisou de 31 anos – os exatos 31 anos de sua vida, minuto a minuto – pra chegar àquele instante, para se fortalecer e sentir-se mais poderosa que o seu próprio destino.
Sobre a penteadeira um bilhete sem data – que tenho em minhas mãos:
“só se vagueia só
pois dois
caminhariam juntos”