N’algum momento da madrugada, no quarto mal iluminado de sempre – possíveis realidades 0 702

postado por Rafaé, o terceiro de baixo pra cima.

“A morte sobrevive a todos”. Foi esta a última frase. Lida, relida e grifada por H. em meio ao conto que vem escrevendo há meses e não chega a lugar algum. “Talvez este seja o fim”, pensou com a constante insegurança que o compõe. Fechou o computador e, com a certeza dos que não sabem o que fazer, convenceu-se de que o melhor era deitar – mesmo sem sono.

Ao se virar para a cama, o sempre distraído H. se surpreende, como não soubesse que M. estava ali, repousando no mais sincero sono. À luz fraca da lâmpada, seus cabelos negros, espalhados no travesseiro branco, lembravam uma zebra.

Na verdade não, mas H. sempre sai de suas leituras fantasiosas buscando vislumbrar uma nova realidade. Logo passa. Logo a sisuda lucidez – lamentavelmente – o domina novamente.

Deteve-se ali, sentado no canto onde estava, observando-a. Onde estaria M.? A serenidade de seu sono em nada lembrava o caos que essa pequena provoca quando acordada.

H. serviu uma generosa-última-dose de uísque e sentou-se à beira da cama, onde podia observar M.. Como pode? Uma figura tão única estar ali, agora, onde passaram tantas outras, que partiram sem deixar ou carregar marcas. O que a tornava esta personificação de tantas idealizações? Compondo um sonho que só ela poderia descrever, no conforto de afagos mágicos, inimagináveis para quem não os viveria sinceramente. As respostas, H. sempre soube. O esforço agora era em tentar expressá-las. O desfecho para o seu conto estaria aí, tinha certeza.

M. com certeza contaria esta história de uma maneira mais simples e direta, com a simplicidade e felicidade que só o descompromisso infantil possibilita. Para ela, todo e qualquer sentimento por H. seria definido como maior que tudo, porque H. era o maior e mais forte homem do mundo. E isso bastaria para a maior felicidade inundar a vida.

Mas H., ali, sentia-se aflito. Por dias tentou protegê-la. Esconderam-se. Fecharam todas as janelas que davam para o mundo, para que o tempo jamais os atingisse. Em vão. Quando abriu as janelas viu um mundo que o ofendia, como se a verdadeira realidade estivesse lá fora, jamais naquele quarto. Os pequenos prazeres cotidianos entre H. e M. não deveriam fazer parte desta vida.

Disso fizeram um jogo de cumplicidade, onde não jogavam; apenas viviam e ganhavam diariamente, construindo algo que não sabem exatamente o quê, mas se tornava a cada dia mais forte. Uma força que o mundo jamais conheceu. E se tomou conhecimento, ignorou, pois na vida existem outras prioridades.

Aqui estão as soluções; atrás das cortinas que todos fechamos para o mundo.

Tomado por um impulso, H. tomou de uma só vez o que restava da generosa-última-dose de uísque e levantou certo de que possuia a receita para finalizar seu conto com maestria. Olhou uma última vez para M. que ainda imóvel o transmitia a maior serenidade do mundo. Ela estaria ali a noite inteira, respirando tranquilamente ao seu lado.

Como agradecimento, H. apagou a luz e veio deitar-se ao seu lado. Fechou os olhos e relaxou, certo de que a encontraria em algum canto daqueles infinitos sonhos. Lá existiria a essência do seu conto.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski