postado por Rafaé, o terceiro de baixo pra cima.
“A morte sobrevive a todos”. Foi esta a última frase. Lida, relida e grifada por H. em meio ao conto que vem escrevendo há meses e não chega a lugar algum. “Talvez este seja o fim”, pensou com a constante insegurança que o compõe. Fechou o computador e, com a certeza dos que não sabem o que fazer, convenceu-se de que o melhor era deitar – mesmo sem sono.
Ao se virar para a cama, o sempre distraído H. se surpreende, como não soubesse que M. estava ali, repousando no mais sincero sono. À luz fraca da lâmpada, seus cabelos negros, espalhados no travesseiro branco, lembravam uma zebra.
Na verdade não, mas H. sempre sai de suas leituras fantasiosas buscando vislumbrar uma nova realidade. Logo passa. Logo a sisuda lucidez – lamentavelmente – o domina novamente.
Deteve-se ali, sentado no canto onde estava, observando-a. Onde estaria M.? A serenidade de seu sono em nada lembrava o caos que essa pequena provoca quando acordada.
H. serviu uma generosa-última-dose de uísque e sentou-se à beira da cama, onde podia observar M.. Como pode? Uma figura tão única estar ali, agora, onde passaram tantas outras, que partiram sem deixar ou carregar marcas. O que a tornava esta personificação de tantas idealizações? Compondo um sonho que só ela poderia descrever, no conforto de afagos mágicos, inimagináveis para quem não os viveria sinceramente. As respostas, H. sempre soube. O esforço agora era em tentar expressá-las. O desfecho para o seu conto estaria aí, tinha certeza.
M. com certeza contaria esta história de uma maneira mais simples e direta, com a simplicidade e felicidade que só o descompromisso infantil possibilita. Para ela, todo e qualquer sentimento por H. seria definido como maior que tudo, porque H. era o maior e mais forte homem do mundo. E isso bastaria para a maior felicidade inundar a vida.
Mas H., ali, sentia-se aflito. Por dias tentou protegê-la. Esconderam-se. Fecharam todas as janelas que davam para o mundo, para que o tempo jamais os atingisse. Em vão. Quando abriu as janelas viu um mundo que o ofendia, como se a verdadeira realidade estivesse lá fora, jamais naquele quarto. Os pequenos prazeres cotidianos entre H. e M. não deveriam fazer parte desta vida.
Disso fizeram um jogo de cumplicidade, onde não jogavam; apenas viviam e ganhavam diariamente, construindo algo que não sabem exatamente o quê, mas se tornava a cada dia mais forte. Uma força que o mundo jamais conheceu. E se tomou conhecimento, ignorou, pois na vida existem outras prioridades.
Aqui estão as soluções; atrás das cortinas que todos fechamos para o mundo.
Tomado por um impulso, H. tomou de uma só vez o que restava da generosa-última-dose de uísque e levantou certo de que possuia a receita para finalizar seu conto com maestria. Olhou uma última vez para M. que ainda imóvel o transmitia a maior serenidade do mundo. Ela estaria ali a noite inteira, respirando tranquilamente ao seu lado.
Como agradecimento, H. apagou a luz e veio deitar-se ao seu lado. Fechou os olhos e relaxou, certo de que a encontraria em algum canto daqueles infinitos sonhos. Lá existiria a essência do seu conto.