postado por Rafaé.
M;
Já-não-sei-quanto-tempo-depois, volto a lhe escrever. Desta vez, sem motivo maior, desculpa ou queixa. Estou apenas relembrando alguns hábitos abandonados no passado. Juntamente às tardes no café a três quadras da catedral, inventando perfis de frequentadores desconhecidos, resolvi voltar a lhe escrever.
Como é difícil escrever a quem já não conhecemos. Sinto-me inseguro em questionar sua vida. Seus sonhos ainda são sonhos? O que seus desejos lhe renderam? Quais livros tem instigado as suas atitudes? Sempre gostei de saber dos livros que estiveram em suas mãos.
Lembro-me bem das tardes em que passava imersa em seus livros, pois via neles o único lugar da casa onde ainda se podia estar sossegada.
Trocaria meu conforto diário para ter acesso aos seus livros. Perco a conta das noites em que sonhei visitando suas páginas lidas, com sublinhados, anotações e desenhos. Quando marcamos algo na página de um livro estamos deixando uma carta a alguém. Como eu gostaria de ser o seu destinatário…
Deus sabe o quanto eu gostaria de saber um pouquinho que fosse sobre você. Apenas pra poder puxar um assunto. Até mesmo nos convencer de que me interesso pela sua vida. Um interesse maior do que a simples vontade de escrever.
O desejo de me reportar a você surgiu no amanhecer de ontem. Sentado naquela mesma pedra à beira do rio em que ficávamos para ver o nascer do sol – que geralmente nascia minutos após o dia clarear, por trás das nuvens. Voltei lá.
Enquanto o sol não aparecia, lembrei das nossas disputas, em dar nomes de filmes às nuvens de acordo com suas formas. Sua imaginação sempre fora menos lógica. Lembro do dia em que nomeou uma nuvem de O Segredo pois ela tinha um “formato inexplicável”. As nuvens perdem forma e significado muito rápido; sem citar as que se dissolvem. Mas a O Segredo nunca deixou de honrar o nome, pois seu formato nunca se explicou.
Mas minha frustração foi inevitável. Nuvem alguma me lembrou filme. Não sei se minha percepção está destreinada, ou você me conduzia a realidades em que não transito só. O fato é que nem mesmo as nuvens me tiraram do tédio de esperar um sol radiante que me expulsaria dali em minutos.
No fundo, acho que as nuvens são como as sensações: todas básicas. É a maneira como a gente as compreende que pode salvá-las.
Parece-me vã a preocupação em lhe escrever. Já não sei mais quem é você. Que hábitos possui. Que valores compartilharíamos. Não sei sequer se continua a usar este e-mail.
Já-não-sei-quanto-tempo-depois, volto a lhe escrever. Seja como for, onde estiver, espero que esta lembrança a encontre em companhia de bons livros, que lhe possibilitem nomear, cada vez mais, nuvens inomináveis.
Com todo o amor que me ensinou a compreender,
H.