postado por Carolina
O homem
Doente há muito, precisei sacrificá-lo, mas a pior parte é o enterro. Não pude sozinho e Vivaldi me acompanha. Não compreendo a morte; tampouco compreendo Vivaldi. Só sei por certo que suas composições me distraem da tempestade. Acabo de lembrar que não reguei o bonsai, hoje. O que a menina tinha na cabeça quando resolveu me dar aquela coisa no aniversário? Sempre foi meio inconveniente. Onde já se viu, presentear alguém com um bonsai. Tome, pai, feliz aniversário, um pouco mais de trabalho para você, como se eu mesma já não fosse suficiente pra tua cabeça.
A cova está pronta, agora. Lucky caberá com algum conforto e tem até espaço de sobra, caso sonhe além de si enquanto dorme. Ele sempre esteve ali, de presença discreta – como a estante que ocupava o canto da sala há tanto tempo, e por obra de um dos filhos arteiros partiu-se ao meio e precisou ser retirada. Um vazio no ambiente e a angustiada sensação de que, ali, faltava alguma coisa. Desde ontem isso aqui está assim. Acho que hoje não vou regar o bonsai, nem mexer nos pomares. O cotidiano era mais firme quando Lucky o vivia comigo. Engraçado como não se cansava de pausar olhares, longos, serenos… eu lhe censurava a preguiça, mas sabia que aquele era um cão que nasceu para pensar.
Que cão.
O cão
Pobre… ainda sofre do ciático. Parece desconfortável enquanto manuseia a pá para retirar terra do solo. Não chora por mim e, na verdade, creio que jamais o vi chorando. Talvez quando a filha do meio receber o diploma das mãos do reitor e sorrir em sua direção, com aquela roupa de seda grande demais para sua ossada pequenina, caia por seu rosto alguma lágrima tímida e modesta. “Isso aqui é seu”, ela gritará, lá do palco. Quando a mais velha lhe disse que o mundo fez um pouco mais de sentido após terminar de ler A Mãe, de Maksim Gorki, pensei ter visto um brilho úmido expandir-se pelos olhos, mas logo se dissolveu.
Ele tem tantas perguntas e eu mesmo as tive, e agora sei respondê-las. Queria poder lhe contar algumas coisas, mas ele não pode me ouvir. Continua a retirar terra com a pá; a jardinagem sempre lhe fez bem. Seus pomares e vergeis têm exuberância sistemática, metódicos como tudo em que põe as mãos. Cuida das flores, dos pés de couve e da pitangueira nos dias em que a própria mente é demais para suportar dentro de si, sozinho. A do meio lhe deu um bonsai de aniversário, anos atrás, e ele reclama do presente sempre que tocam no assunto. Mas todas as manhãs, há sete ou oito anos, ele rega a terra com água mineral e corta algum galho que cresceu além da conta, e ao fim sua respiração está sempre mais leve.
Ergue meu corpo do chão e me põe na cova, de semblante contraído pelas dúvidas na mente. Enterra-me, enquanto um disco de Vivaldi embala as reflexões daquele homem que nasceu para pensar.
Que homem.
Que textos.