Por Marcos Antonios
Série “…derrotas em que ninguém perde nada de valor”, parte dois. A parte um se chama “Cotidiano nº3”, e está aqui.
Tatuagens com motivos japoneses estão na moda nesse bimestre. Gabriel adora tatuagens.
No estúdio. “Que tipo de desenho você quer?” (João, dono do lugar). “Letras japonesas. Quero escrever uma mensagem. Vai ser uma declaração sobre a minha personalidade”. “Legal. Já sabe o que você quer exatamente?”. “Sei. Vai ser “O rio parece parado quando o peixe corre na mesma velocidade da água”. “É bonito”. “É meio filosófico, né?” (um cliente qualquer, ouvindo a conversa dos outros, como toda pessoa sensata). “Meio abstrato” (João novamente). “É! Tipo isso”. “Tá…sei lá. Mas quem faz letras japonesas aqui é o Paulo, que foi almoçar. Espera um pouquinho?”.
Paulo foi almoçar depois do horário previsto, já que João o segurou mais que o necessário durante a manhã sob a alegação de que precisava “falar de umas coisas”. Os assuntos eram menores, e poderiam ser tratados mais tarde sem nenhum prejuízo. Dessa forma, o tatuador se viu no direito de executar um plano de vingança: demorou para voltar ao trabalho, para dar uma lição no chefe. No entanto esta acabou sendo uma lição em que, depois da qual, nem o aluno guardou algum ensinamento importante, e nem o ego do professor saiu tão massageado a ponto de amenizar a sensação de nada que ele sentiu ao aplicá-la. Conflitos em microuniversos.
Paulo chega do almoço. João não dirige a ele sequer um olhar de desaprovação, porque até seu melhor funcionário tem o direito de cometer erros. O que Paulo não notou é que seu plano foi frustrado pela sua própria competência e, não sabendo disso, entrou na loja, tomou um copo de água e concentrou-se no pedido do novo cliente. Riscou um esboço para tornar mais claro o projeto, colocou um preço nele e marcou a sessão para daqui duas semanas. “Uma sessão dá pra fazer ela inteira”. A tatuagem que Gabriel quer não tem em si nada de especial ou interessante esteticamente, mas há de se respeitar algumas das bobagens das pessoas que ajudam a pagar suas contas. Gabriel tem um peixe em mente, e nesse universo fantasioso o peixe corre, preferindo fazer isso a nadar. Não faz sentido. Mas a vida não faz sentido, de qualquer forma. Paulo pensa que o acaso deveria conceder esta licença, a poética, apenas para portadores habilitados.
Atualização:
O tempo tem seus caprichos (poucos compreendem os motivos). São 10h do dia combinado para a realização da tatuagem e Gabriel está pensando em telefonar no estúdio para cancelar o pedido, “ pra poder pensar melhor”. A desculpa parece boa o bastante.