Dicionário das coisas conforme elas deveriam ser definidas 1 777

postado por Carolina

Abacaxi: falácia da natureza que engana a quase todos os seres humanos (exceto as poucas Escolhidas Que Enxergam) lhes conferindo paladar duvidoso e consequente mania de colocar abacaxi em tudo que possa ser agridoce, sem saber que a referida falácia é um veneno a longo prazo formulado pela Mãe Natureza para exterminar os seres humanos e permitir que as plantas e as Escolhidas dominem toda a extensão da vida na Terra.

Água: gente, água. Água é uma substância que comporta maravilhas. Vê só, cheira o ar: vai vir uma coisa que você não enxerga mas sabe que está ali porque sente vida entrando nos pulmões enquanto respira. Daí duas dessas coisas que você cheirou se juntam e, com um trovãozinho, formam uma outra completamente distinta, molhada, transparente, que toma a forma do que você quiser. Se você enche com água um daqueles globos terrestres infláveis ela assume o formato do mundo. Olha que lindo.

Amor: Palavra Proibida. Estamos estudando sua retirada deste dicionário porque já perdemos cinco integrantes de nossa equipe que se reclusaram por semanas e meses na tentativa de elaborar um conceito. Enlouqueceram. Ficamos sem resposta. Não encontramos sinônimos. Não detectamos limites. A propósito, temos vagas abertas.

Baixinhas: agrupamento de cidadãs subestimadas, mas com destino já predestinado de reinarem no Universo.

Barba: manifestação capilar que recobre os rostos dos indivíduos de sexo masculino e que carrega algum pó mágico muito poderoso de encantamento.

Caminhão: grande caixote com pneus que nos faz ter vontade de crescer logo pra alcançar os pedais e sair pelas estradas de um mundo que é demasiadamente amplo pra gente ficar num lugar só, com um boné do posto local e uma paixão arrebatadora a cada nova cidade.

Coração: massa vermelha que bate por dentro do corpo e que se não bate é sinal de que alguma coisa está errada. Bote a mão no peito e veja se você está tudo ok por aí antes de prosseguir. Muito bem, continuemos. Coração: bombeia sangue pra todos os lados, dois átrios, dois ventrículos e responsável por sermos todos loucos cometedores de insensatezes de toda ordem quando decide mancomunar com a Palavra Proibida.

Infinito: uma coisa muito grande e que não dá pra medir, mas que tá mais ou menos por perto quando nossa irmã mais nova passa no vestibular ou quando a gente ganha um livro novo.

Poesia: mistura de palavras que procuramos pra ler quando não fazemos sentido pra nós mesmos.

Poeta: pessoa que não sucumbiu ao costume humano de reprimir o que está sentindo e que tem a louvável coragem de mostrar pra todo mundo. Para isso ele mistura algumas ou muitas palavras e quando a gente lê parece que perde o ar e vivemos instantes de deleitosa perturbação. Tá tudo atrelado, veja: Palavra Proibida, poeta, coração e água. Epa, espera, isso não faz sentido.

“essa ideia
ninguém me tira:
matéria é mentira*”

Ufa. Tô melhor.

Remédio: a maior fonte de traição das mães da Humanidade. “É gostoso, filha”. Nunca é. Não quero saber se vou ficar melhor depois, a vida é agora, mãe.

Atenção: conceitos variáveis conforme a preferência de quem os lê. Se quiser, redefina um termo, redefina todos. As coisas nunca são fixas ou unitárias. Nunca são uma só. São tudo isso e mais o que você acha que elas são.

*Leminski.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1275

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1212

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski