por André Petrini.
Shangai, 11 de maio de 2209.
Alice,
hoje faz 8 anos, 5 meses e 13 dias que completei 30 anos e me privaram de te ver crescer, para vir a este lado do mundo pagar os anos míopes de intolerância e escravidão que nossa raça impôs a estes povos, hoje mais amargos que chá de Xia Ku Cao. Você está completando 10 anos, e gostaria de te contar como era o mundo antes de virar este caos.
Tenho certeza que na escola você aprende sobre este período pela ótica oriental, mas saiba que nem tudo era ignorância, e o racismo não era aceito por todos. Pelo contrário, muitos de nós, como o seu avô e bisavô, tentavam ao seu próprio modo trazer um pouco de dignidade e respeito aos que geralmente não tinham isso garantido pela sociedade. Você com certeza já ouviu sua avó falando do Sr. Lee, um chinês muito magro que chegou à nossa casa em busca de abrigo, fugindo de uma fábrica escravocrata.
Nós nunca soubemos seu nome verdadeiro porque, hoje entendo isso na pele, quando se é submetido a regimes de ódio em período integral, tende-se a desconfiar até mesmo de quem te estende a mão. Sempre o chamamos de Lee porque foi uma das poucas palavras que meus pais compreendiam de seu dialeto, e nos anos seguintes ele nunca fez questão de dizer seu nome verdadeiro. Provavelmente um jeito de não nos colocar em perigo caso alguém descobrisse seu paradeiro.
Sr. Lee chegou à nossa casa faminto, doente, vestindo trapos e muito assustado. Nos primeiros dias mal conseguia mastigar e era impossível dizer a cor de seus olhos, e até mesmo se ainda os tinha, tamanho era seu receio de olhar em nossa direção. A ponta de seus dedos já não tinha mais as impressões digitais, suas costas eram profundamente marcadas pelo couro do açoite, e sua perna direita era curvada para dentro, resultado de uma fratura não tratada. Eu ainda era criança, e às vezes ficava intrigado espiando aquele homem de tamanha magreza que tinha seus ossos cobertos apenas pela fina camada de pele, parecendo um esqueleto vestindo pele humana.
Quando Lee se recuperou, meu pai conseguiu um emprego para ele na empresa que trabalhava, e os dois passaram a ir e voltar do trabalho juntos, formando a amizade que você com certeza já ouviu falar. Até hoje me lembro da felicidade estampada em seu rosto quando voltou para casa com o primeiro salário, e quis guardar tudo com medo de ser escravizado novamente. Levou um bom tempo até que conseguisse usar o dinheiro para comprar alguma coisa que não fosse extremamente necessária à sua sobrevivência, e quando o fez, foi para trazer uma bola de futebol nova para mim. Dizia, em sua mistura de mandarim aportuguesado, que agradando o filho se agrada ao pai.
Aqueles foram bons anos para a sociedade de uma forma geral, mas nós não sabíamos a que custo isso estava sendo executado. É difícil dizer como passou despercebido pela maior parte de nós o fato de que nossos povos escravizavam seus semelhantes do outro lado do mundo, em busca de recursos naturais e mão de obra barata. Nunca fora tão fácil comprar roupas, sapatos, eletrônicos, carros, e até apartamentos novos, e ninguém fazia questão de perguntar quem pagava pela diferença.
O resto você já deve ter ouvido falar. Um grupo de chineses escravos conseguiu se comunicar com outro grupo, que se comunicou com outro grupo, e explodiram três fábricas que juntas, concentravam 75% da produção mundial de energia. Alguns grupos de negros, judeus, homossexuais e indianos se juntaram aos chineses e deram o golpe dos até então marginalizados. Com o resto do mundo enfraquecido, a Revolta foi rápida. Mas ao contrário das Guerras anteriores, a única opção que nos foi dada era a de submissão, e a partir de então, todo homem com 30 anos ou mais seria levado para trabalho forçado em suas fábricas. Vivendo tanto tempo escondidos da sociedade, com condições mínimas de sobrevivência, não entendiam como o dinheiro lhes poderia ser mais útil do que limpar a honra dos anos que lhes foram roubados.
Alice querida, não tenho mais muito tempo para continuar a carta, mas apesar de tudo isso não quero que sinta raiva deles. Pelo contrário, peço que seja gentil e amorosa com todos que estão ao seu redor e lembre que se esta carta pode chegar até você, é porque a família do Sr. Lee é grata ao seu avô. Se não o tivéssemos acolhido quando bateu em nossa porta, talvez hoje eu não pudesse te dar os parabéns mais este ano. A nossa distância é grande agora, mas isso é para nos encontramos em tempos melhores, onde a felicidade é plena e constante para todos os povos, porque só assim vale a pena ser feliz.
Feliz aniversário.
Beijos, papai.