Quase sempre tão juntos 0 807

postado por Rafael.

Nunca fui dominado por medos. Mas coragem jamais foi traço forte em mim, até
Como usual, conversamos por escrito. Talvez melhor que em qualquer outro
que encontrei você. A coragem tem falhas decisivas, que infiltram qualquer
formato.
segurança. Por isso, nunca fui um obcecado pela perfeição; nem mesmo a
Vou tentar descrever o que você significou pra mim: uma massa que infla e tem
aparente.
uma cor meio verde-piscina. A cor me inspira tranquilidade e me faz sentir bem,
J
amais diria que você mudou minha vida. Foi apenas uma das histórias com as
muito bem. Quando infla aqui por dentro, me preenche, me faz sentir menos só
quais deparei nessa artéria do espaço e do tempo. Como quem pega pela mão,
e responde a algumas dúvidas (meio sem responder, como se a massa fosse
você me levou a outro mundo, onde eu realmente pude me sentir. Só então pude
resposta em si).
contemplar algo. Não era nada que eu procurasse. Nada que eu desejasse. Era
Mas ela inflou demais, por ter sido tanto e tudo o que foi. Sem ter espaço para
algo que eu não sabia que existia. Algo em mim.
crescer, atingiu meus limites e tive que liberá-la.
A partir de então, nada seria rotina; nada passaria despercebido. Acordar de
Não tive escolhas. As coisas foram acontecendo com uma intensidade que eu
ressaca, com dor de cabeça, tornou-se uma celebração à água. “Como pode, algo
não estava pronta para viver. Forte demais, e são tantas situações – aliás, o que
tão milagroso ser assim, transparente, tão passivo de forma?”. Jamais me
não faltam são situações, de todos os lados. Precisei optar.
esquecerei destes momentos em que a morte não me assustaria, pois tinha a
Eu gosto de mergulhar de cabeça nas coisas que surgem pra mim, mas
certeza de que eu tinha finalmente atingido a vida.
infelizmente sou incapaz de entrar de cabeça em todas elas ao mesmo tempo,
A vida dura para sempre, nós é que a abandonamos. Comigo não foi diferente.
ao menos não sem me afogar. E eu estava me afogando.
Como tivesse sonhado e um despertador me acordado, me vi desprotegido de
Com você percebi que o mundo é mais. Maior do que compreenderíamos.
você. Assim, brusco como tudo o que nos vicia e continua seu caminho, sem nos
Diante de tudo, eu preciso de espaço para que as coisas caibam em mim.
carregar.
Preciso prová-las. Assim como nos provamos. Como nos tivemos.
M
as a morte já não me atingiria, pois nada em mim lembrava vida. Nada que me
Jamais duvide do que eu senti por você e a questão nunca foi essa. Hoje
desse vontade de um amanhã. Já não me enxergava. Não havia pelo que acordar.
posso enxergar, acompanhada destas lágrimas que te pertencem, que

P
assei a viver um mundo de lembranças. Recordando o instante em que
coincidimos, 
e depois media a distância que estávamos deste tempo; dos
sentimentos e, sobretudo, 
da memória.
Vivia uma saudade. Mas não aquela saudade que quer magoar. Apenas uma
saudade 
que celebra o passado. Um passado vivido.
Meus olhos sempre foram pequenos demais para as coisas tão grandes que nos
rodearam enquanto estivemos juntos. Hoje enxergo o que já não tem mais tamanho.
Sinto falta do que não existe. Algo em torno de qualquer saudade de mim
mesmo. 
Pois quem somos é sempre algo do que fomos, por mais que inventemos
coisas novas. Ainda não sei precisar tudo isso em palavras, pois

***

foi tudo tão rápido que não pude dizer que te amo.

Previous ArticleNext Article

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski