escrito por André Petrini.
Felipe era um homem médio. Crescera assim, e a média era seu único meio de viver. “Na medida; nem para mais, nem para menos”, dizia sempre. A verdade é que não sabia ser diferente, e havia sido assim desde quando podia se lembrar. Precisamente, desde o dia 28 de junho de 1982, quando recebeu seu primeiro boletim escolar, com nota 6 em todas as matérias. Hoje, preso numa idade entre a juventude e a velhice, tem seu 1,70m de altura, 69,4 Kg, faz parte da Classe Média (a antiga, não a nova, como ele bem gosta de ressaltar) e seu time nunca foi além da 5ª posição no Campeonato Brasileiro. Tudo isso faria de Felipe Silva de Oliveira a pessoa mais desinteressante do mundo, não fosse um detalhe que ele pretende mudar em breve: é o ghostwriter que escreve todos os livros do Paulo Coelho.
Sua insatisfação não vinha das gozações que recebia pontualmente às 9:45 dos colegas, ou fato de trabalhar em uma cadeira já muito velha enquanto seu “patrão” tinha a Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras. “Faz parte da profissão que eu escolhi”, afirmava para si mesmo. Mas em uma quinta-feira daquelas que se mostram perfeitamente ordinárias até que algo acontece e muda todo o rumo do nosso dia – às vezes até da vida -, enquanto escrevia um novo livro, foi tomado por uma raiva que chicoteou em seu corpo, fazendo-o cair de rosto na velha máquina de escrever.
Ficou ali por alguns instantes, se apoiou na mesa e foi levantando a cabeça lentamente, como a evitar as indesejáveis vertigens que nos acometem em movimentos súbitos. Olhou novamente para a folha ainda presa à máquina, fitando as últimas palavras que escrevera, e a cólera aumentava a cada sílaba que compunha a frase “viu sua esposa partir, achando ser para nunca mais, sem imaginar que a encontraria no ano seguinte, em suas férias pelo Casaquistão”. Arrancou a folha com brutalidade e a amassou o máximo que pode, para depois colocar na boca e engolir aquele trecho de ódio impresso.
“Eu nunca saí de Campinas. Eu nunca tirei férias. Eu nunca tive uma esposa. Eu nunca sequer amei alguém.”. Aqueles pensamentos colocaram a miséria de sua vida diante de si, e decidiu que estava na hora de conquistar tudo que havia dado para o mago. “A começar pelos livros, que são todos meus. MEUS! O único que ele tentou escrever, fracassou exemplarmente. E agora o mundo precisa saber.”, foram os pensamentos que o começaram a projetar a repercussão que isso teria. Já podia ver as manchetes nos jornais ao redor do globo vociferando “Revelado o ghostwriter de maior sucesso da história”, e nas revistas de fofoca sairiam entrevistas: “Conheça o homem que escreveu os livros de Paulo Coelho”. “E os royalties, imagine os royalties, Felipe!”, exclamou animado.
Se havia uma forma de fazer esta revelação, deveria ser em uma carta aberta à imprensa. Mas desta vez, assinada, contaminada por suas impressões digitais, e marcada com o sangue de seu dedo polegar, se fosse necessário. Não era mais tempo de se esconder. Recolocou o papel na máquina e começou a escrever. Dirigia-se a todos aqueles que liam, haviam lido e pretendiam ler algum dos livros daquele senhor que eles acreditavam ser também um belo escritor. Pedia desculpas primeiro por tê-los enganado, permitindo que depositassem sua admiração e fé em outrem, e ainda, pela baixa qualidade a que submetia seus textos. Agora, livre das amarras do salário, prometia explorar seu potencial criativo para lhes presentear com uma obra de arte libertadora e intelectual, ao contrário da filosofia de Biscoito Chinês a que estavam acostumados.
Continuou escrevendo aos fãs do Coelho, que antes de tudo, eram SEUS fãs, afirmando que o caráter de auto-ajuda das obras não passava de psicologia barata que ajudava a rentabilizar a indústria literária, porque ele, o próprio autor daquelas palavras, vivia uma existência sem sentido, à sombra de outra pessoa, e se as palavras pudessem fazer qualquer sentido, haveriam de ter começado por ele.
A carta estava pronta e assinada. Bastava revisar e enviar suas cópias para os principais jornais, que todo o resto seria feito pela própria mídia. Relia o texto, absorto pela sua vitória iminente, tomado pelo sabor de sua vingança, deliciado a cada frase que se aproximava do final. Mas ao terminar, algo estava muito errado. Não podia acreditar naquilo. Esfregava os olhos para ter certeza que não era uma imagem retida, uma miragem ou algo que o valha. Não era. Ali estava, assinado à caneta no final de sua carta de alforria: Paulo Coelho. Como poderia? Tinha certeza de ter assinado seu nome completo. “’Felipe Silva de Oliveira’, onde está?”. Mas não estava.
Sentou mais uma vez desesperado, amassando também a carta, atordoado pela constatação de que, com o passar dos anos, havia cedido não só suas palavras, mas também sua personalidade ao velho que tanto desprezava. Tornara-se sua sombra. Desolado, sentado em seu cubículo chorando, rasgou a carta ao meio e comeu uma das metades. Felipe ainda era um homem médio. Crescera assim, e a média era seu único meio de viver.