Em briga de marido e mulher, a faca se mete 0 897

Por Zé Luís Schmitz, o mago

Não tinham princípios. Na verdade, não tinham nem meio e nem fim. Não tinham vida. Aquela vida amorosa, sabe? Afetos, carinhos ou pelo menos uma troca de olhares. Nada. Diálogo então, nem se fala. A não ser quando todos esses fatores resultavam em brigas. Eram muitas, por sinal. Ninguém mais aguentava o ritual de discussões do casal da Rua dos Funcionários, número 403. Quando falo ninguém, não me refiro apenas às pessoas, mas sim, a tudo. E foi assim que coisas estranhas começaram a acontecer.

A primeira delas, há alguns meses. O marido, Billy, um homem que aparentava bem mais idade do que realmente tinha por causa de seu cabelo grisalho e seu rosto enrugado, estava cortando as unhas na varanda da casa. Enquanto isso, sua esposa, Dedé, que sempre usava vestidos floridos e não tinha menos do que 110kg, estava fazendo chapinha no cabelo na sala, ao mesmo tempo em que assistia ao Domingão do Faustão.

Na televisão, Fausto Silva chamou a próxima atração do Programa.

– Vem aí, umas da melhores atrizes da nova safra da Rede Globo. Grazi Massafera, bicho!

Billy, escutando tudo o que se passava na televisão, gritou lá de fora falando com ele mesmo.

– Ói! Essa é cremosa, hein?

Dedé não deixou barato. Saiu pra cima dele com a prancha de fazer chapinha na mão. Começava mais um barraco na vida deste infeliz casal.

– Seu pedreiro! Isso não se fala. Principalmente na minha frente. Vai trabalhar em que obra hoje, hein?

Billy continuou calado. Na televisão, Fausto Silva continuava a falar sobre a atriz.

– É brincadeira essa fera, meu. Tanto no pessoal quanto no profissional.

Mas Billy não é homem de abaixar a cabeça. Ainda mais nesses momentos de discussões: a sua maior diversão.

– Calaboqui, sua idiota. Quer dizer que só pedreiro que acha muié gostosa, é? Ela é memo. Ah, como eu queria comê uma muié dessa. Pelo menos dá tesão. Não é como você que faz meu garotão murchá. É por isso que nóis não temo filho.

Ele saiu correndo, foi até a televisão e falou com o Faustão como se o apresentador o estivesse escutando.

– E você, seu gordo e chato do caraio. Essa muié aqui sim que não é brincadera. Você não sabe como eu sofro na mão dela, seu babaca.

Tudo isso fez com que Dedé ficasse ainda mais nervosa. A partir daí, a discussão só aumentou. Os dois jogaram um na cara do outro milhões de coisas. Sempre a mesma ladainha. Até que, por um instante, aconteceu uma coisa surpreendente e inusitada. O Super Homem que agitava a platéia do Programa do Faustão saiu de dentro do televisor e pulou para a sala do casal. Os dois ficaram muito assustados.

Segundos depois, o televisor explodiu, deixando uma enorme poeira e muita fumaça. O Super Homem não disse nada. Subitamente, correu em direção a mulher, pegou a prancha de fazer chapinha e começou a queimar todo o braço dela. O marido, assistindo aquilo, se rolava no chão de tanto rir. Dedé não parava de gritar. Depois de deixar o braço direito da Dedé todo queimado, o Super Homem também foi em direção a Billy, tirou o cortador de unhas da mão dele e começou a perfurar a perna do homem. Agora, foi a vez de Dedé dar boas gargalhadas do marido, mesmo gemendo e toda ensanguentada no chão. O Super Homem terminou o serviço e foi embora, contente por ter feito mais um grande ato heróico: ter dado paz, pelo menos por mais uma noite, a toda a vizinhança do casal.

Este acontecimento foi apenas um aviso do que ainda estava por vir. Por algum tempo, Billy e Dedé evitaram se encontrar para não brigarem novamente. O resultado da última discussão foi inexplicável e, sinistramente, assustador. Não queriam mais ver aquilo. Billy ficou semanas sem dormir, traumatizado. Dedé nunca mais assistiu ao programa do Faustão.

Mas, alguns meses depois, o pior aconteceu. Billy estava na cozinha preparando seu almoço. Ele adorava comer pão com banana frita, e quase todo dia, era isso que comia. Dedé havia acordado naquele instante. Ela se acostumou a fazer vitamina de banana todos os dias quando acordava. Quando ela foi pegar as bananas no cesto de frutas, percebeu que haviam acabado. Billy havia usado as últimas para fazer o almoço dele. A mulher ficou extremamente enfurecida. Para vocês terem uma idéia, ela ficou roxa de raiva como nunca havia ficado antes em toda a sua vida. Aquilo havia passado dos limites. Pegou uma faca na mão e foi para cima do marido. Billy se defendeu com a colher que estava usando para virar as bananas na frigideira. Os dois gritavam coisas horríveis para ofender o outro.

Não aguentando mais aquilo, a faca pulou da mão de Dedé, puxou a colher da mão de Billy e disse:

– Colher, não se meta.

A faca enfurecida pelas costumeiras brigas do casal foi pra cima de Billy e começou a cortar o homem. Furou ele todinho. O último golpe foi o fatal, no coração. Dedé estava assistindo tudo aquilo. Ela não ria como fez no caso do Super Homem. Estava paralisada, desesperada e muito assustada com o que estava acontecendo na frente dos seus olhos. Como pode uma colher e uma faca ganharem vida? Será que estou sonhando? Fico feliz que meu marido esteja todo ferido no chão? Ou começo a gritar por socorro? Não deu tempo de se perguntar mais nada. A faca partiu para cima dela e deu os mesmos golpes que havia feito no marido. Sem nenhuma pena. Agora, estavam os dois mortos e ensanguentados no chão. A faca e a colher pararam por um instante e olharam o que haviam feito, admirando cada gota de sangue naquela cozinha. Depois de alguns segundos, as duas se abraçaram e deram muitas gargalhadas. Todos os objetos da casa se juntaram a elas e começaram a rir e cantar. Aquela foi uma noite de muita festa naquela casa.

Por muitos anos, não se ouviu mais brigas naquela rua. Tudo estava calmo. Nunca alguém quis saber o que havia acontecido com aquele casal. A casa deles estava abandonada. Ninguém nunca mais morou nela. Os vizinhos, a rua, as casas, a calçada, os muros e todos os demais objetos puderam, enfim, viver felizes para sempre. Afinal, naquela noite, eles comemoraram muito mais do que a morte do casal. A partir daquele momento, os objetos não viviam mais para as pessoas, mas sim, com as pessoas. E só fariam aquilo que eles quisessem fazer.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6539

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai