escrito por Leandro Fagundes.
Acordei atrasado e com as pernas molhadas de suor, pois o sol já atravessava a janela e vinha bater em cheio no meu cobertor. Espreguiçando-me, empurrei-o com os pés até que ele caísse no chão, soltando um pequeno grunhido, sem me preocupar com o que eles poderiam falar, caso acordassem. Mas essa minha preocupação era inútil porque eu sabia que eles não estavam mais ali. Talvez eu estivesse querendo me iludir e não pensar que, quando enfim criasse coragem e me levantasse daquela cama, não os encontraria. Porque a presença deles, apesar de incômoda no início, foi anulando aquela terrível sensação de solidão em que eu me encontrava.
Eles apareceram do nada e sem motivo aparente para mim. Comecei a perceber a presença deles pelos vestígios que deixavam: restos de biscoito no tapete da sala, latinhas de ervilha, milho e leite condensado com pequenas marcas nas bordas como se minúsculos dentes tivessem tentado abri-las. Na geladeira, frutas e legumes também apareciam com mordidinhas. Na despensa, pacotes de macarrão e bolacha eram abertos e o conteúdo esparramado.
Primeiro achei que se tratava de ratos e cheguei a falar com o síndico, que sem nada entender me disse que não havia outras reclamações e, além disso, há pouco tempo todo o prédio havia sido dedetizado. Não satisfeito, ao encontrar no elevador a senhora que é minha vizinha de andar, perguntei se por acaso ela não havia percebido ratos em seu apartamento. Ela mal me deixou terminar e com desconfiança respondeu que não. Depois, ao sairmos do elevador e antes que eu entrasse no meu apartamento, olhou-me com piedade e perguntou se eu estava bem. Respondi que talvez.
Mas os sinais continuavam e agora eram minhas roupas espalhadas pela casa, meus livros abertos e com pequenas pegadas de chocolate nas folhas (eles adoravam chocolate). A senhora que uma vez por semana vem limpar a casa perguntou-me a respeito da bagunça. Respondi que eram sobrinhos que agora deram para me visitar, sem que ela soubesse que eu não tinha sobrinhos.
Um dia pensei em espalhar ratoeiras pela casa, distribuídas na sala, despensa, quarto, banheiro e num pequeno escritório. Mas no outro dia elas estavam intactas, como se eles não tivessem passado por ali. Assim, como não mais me incomodavam e, pelo contrário, até me faziam companhia, resolvi deixá-los em paz.
Mas a presença deles foi se tornando cada vez mais notada por mim e até pelos vizinhos. Pelos vizinhos, pelo barulho que faziam, contam, durante toda a tarde, em que eu não estou em casa. Segundo uma das minhas vizinhas de andar, eram conversas em uma língua estranha, que seriam imperceptíveis caso não houvesse centenas deles espalhados pela casa. Por mim, pelos vestígios que deixavam, como eu já falei, porque vê-los eu nunca vi. Nunca me deram essa chance. Vontade e tentativas não faltaram. Desde chegar mais cedo da agência e abrir rapidamente a porta para surpreendê-los, fingir que dormia no sofá da sala e vez ou outra abrir os olhos ou até acordar de madrugada e acender rapidamente uma lanterna estrategicamente escondida sob o travesseiro. Tudo em vão.
Certa vez, de manhã, pensei ter visto um deles no banheiro, tomando banho na pia. Mas já estava tão acostumado a eles que a princípio não liguei, passei direto e fui urinar. Quando me dei conta e virei para olhar novamente, ele já não estava mais ali, se é que realmente estivesse. Eu digo isso porque, como não se mostravam para mim, comecei a criar situações em que me via falando com eles, numa tentativa de contato. Acordava de manhã e falava alto bom dia, na esperança que me respondessem. Quando chegava em casa, cumprimentava-os. Deixava pratos com chocolate (a comida preferida deles) e xícaras de chá de erva-doce (a bebida preferida deles) espalhados pela casa, também deixava a TV e o rádio ligados. Uma vez cheguei a ligar para casa, esperando que eles atendessem o telefone. Uma outra, deixei um bilhete no chão, no qual escrevi que não me importava por eles estarem ali, que eram bem-vindos, que ficassem à vontade, que aparecessem para conversar, tomar uma bebida, e muitas outras bobagens.
O fato é que, a partir dessas minhas incursões, eles começaram a não deixar mais rastos. A impressão que eu tive é que não queriam ser notados, apesar de estarem ali e isso ser impossível. Como lembranças ruins que a gente tem e é obrigado a levar consigo até o fim da vida – apesar das tentativas de esquecê-las – e, mesmo que a gente não queira e faça esforços para que isso não aconteça, vez ou outra elas afloram para nos atormentar, invadem nossas vidas, preenchendo-as de um vazio angustiante e silencioso, onde não há lugar para mais nada.
E, quando acordei atrasado e com as pernas molhadas de suor e me espreguicei, soltando um pequeno grunhido, sem me preocupar com o que eles poderiam falar, caso acordassem, eu estava mentindo para mim mesmo, pois sabia que eles não estavam mais ali e que isso era para sempre. E foi assim que eu me vi novamente só. E se agora ainda procuro vestígios, sinais que não mais existem, é para tentar recriar um mundo todo especial deles. Mas só o que consigo é deixar meu mundo cada vez menor, minúsculo, que qualquer dia me pego do tamanho deles, quem sabe até posso me juntar a eles, ou desaparecer sem deixar marcas.