escrito por Rafael.
Após tantos meses de inverno, Ventura já não lembrava mais do calor do sol. Não sabia do conforto da sombra de árvore. Tudo era sombra, tudo era um esforço inútil em tentar relembrar daqueles dias confortáveis, em que viver era tão ilimitado quanto sonhar, e não se diferenciavam em nada.
Vagava furtivo pela vizinhança, como procurasse sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares. Não, Ventura, você jamais reencontraria uma sombra confortável quando tudo o que tinha ao seu redor era escuridão e uma umidade que jamais chegou a se condensar.
Ventura cultivava um hábito, e isso era segredo, de ir à Biblioteca Pública ler e reler o mesmo livro. Jamais o emprestou. Apenas o lia, na mesma mesa de sempre, entre as estantes de literatura estrangeira, com autores de sobrenome que começam com a letra N até os que começam com a letra P. O livro não cito porque não interessaria a ninguém. Talvez já não interesse nem ao Ventura, mas algo o levava sempre até ele, e ficava transtornado quando chegava lá e alguém o havia emprestado.
Era uma tortura diária ir até aquelas estantes e não encontrar seu cúmplice de alguma coisa.
Quando devolviam o livro, era como reencontro de antigo amor. O dia todo era pouco para tudo o que Ventura tinha pra sentir naquelas páginas. Chegadas oito horas da noite, quando a biblioteca fechava, Ventura sentia como estivesse deixando sua amada no ponto, prestes a pegar o último ônibus, torcendo para que o amanhã chegasse tão rápido quando a tarde de hoje passou.
Todo dia foi assim, durante aqueles já não sei quantos anos.
Olhos
Ventura já não vai à biblioteca. Parece ter aprendido a viver sozinho. Perdeu a visão há cerca de alguns poucos anos. Tive certeza de que seria sua morte. Como viveria um homem sem mais poder reencontrar o amor de uma vida na mesma mesa de sempre, entre as estantes de literatura estrangeira, com autores de sobrenome que começam com a letra N até os que começam com a letra P?
Hoje vive sentado na frente de casa, como quem espera a escuridão dividir o dia para se recolher e aguardar o seguinte. Mas sei que naquele eu a escuridão é a única companhia desde que seu amor ficou naquelas prateleiras empoeiradas.
Seus olhos, que outrora foram negros e desconfiados, agora são brancos e distraídos. Pouca coisa lembra vida naquele corpo que sente o peso do tempo e da distância de algo que já não existe. Permanecem ali, mirando um horizonte incerto, praticando a saudade. Uma saudade que o leva a outros tempos, despertando uma nostalgia, que nada mais é do que a tristeza que ficou mais leve.
Tudo nele envelheceu, inclusive os olhos, agora tristes e domados. A única coisa que ainda é vida ali, além da respiração cada vez mais fraca é o contínuo movimento dos lábios. Como repetindo um mantra, passam os dias inteiros inquietos, devem pedir vida, ou descanso, ou alguma coisa que não esteja ali, ou…
negros (tudo claro outra vez)
Mariana. Mariana era o nome dela, e sempre esteve aqui. jamais pude viver sem Mariana, sequer morrer consigo sem ela. desde que a conheci, tive duas mortes e sobrevivi, não sei o porquê. acho que viver é minha sina. não, nunca tentei suicídio, pois jamais me senti vivo a ponto de experimentar a vida dentro de mim. como seria capaz de esvaziar algo que nunca esteve cheio?
sempre achei que o infinito fosse tudo, mas com o tempo percebi que era bem pouco, uma coisa de literatura, algo inventado. o infinito é coisa de quem escreve, um universo que só existe no papel.
durante 1990 dias esperei Mariana, sempre na biblioteca pública, sempre lendo o mesmo franz pacars que nunca terminei.
“mentiras”, um bom título de livro, de um eterno diálogo que nunca chegou a me dizer nada. daquelas páginas lembro apenas que Mariana estava prestes a chegar, e ela chegava, dia após dia, como naquela vez em que voltou de viagem, uma semana em marabá, que me deu aquele abraço e pude a erguer a ponto de não sentir meus próprios pés no chão, até o dia em que não chegou mais.
por conta de outros tantos caminhos, outras tantas páginas, ela se foi, mas não da maneira como vão as pessoas dos filmes, em câmera lenta, com uma música que nos emociona e nos faz querer acreditar que o amor é o norte. se foi a passos largos, decididos, acompanhada pelo ecoar de suas pisadas naquela biblioteca vazia. eu fiquei, fiquei e dei de ombros, como fazem os indiferentes nas páginas dos livros. ninguém dá de ombros na vida real.
fiquei lá até o final do dia, às oito horas, quando a biblioteca fechou, naquela página 67. foi a última vez em que a vi. no último parágrafo da página 67.
desde então voltei todos os dias, à mesma sala, ao mesmo livro, às mesmas páginas. era nelas que eu vivia a ansiedade do retorno de Mariana. ela sempre chegaria entre aquelas linhas. 1990 dias sentindo ela voltar, chegaria a qualquer momento e seria uma surpresa agradável.
mas a escuridão era cada vez mais implacável, e um dia não encontrei a página 67, no outro não encontrei o livro, no outro a biblioteca, no outro a saída de casa. nunca mais encontrei nada, já não sei mais de mim. e a última visão que tenho em minha memória é a do último parágrafo da página 67,
“Passou a vida achando que morreria de amores, e precisou de todos os seus dias, segundo a segundo, para descobrir que apenas viveu deles. Para morrer seriam necessárias outras coisas.”
ao som dos sapatos de Mariana se distanciando passo a passo, cada vez menos sonoros.