Olhos Negros 0 771

escrito por Rafael.

Após tantos meses de inverno, Ventura já não lembrava mais do calor do sol. Não sabia do conforto da sombra de árvore. Tudo era sombra, tudo era um esforço inútil em tentar relembrar daqueles dias confortáveis, em que viver era tão ilimitado quanto sonhar, e não se diferenciavam em nada.

Vagava furtivo pela vizinhança, como procurasse sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares. Não, Ventura, você jamais reencontraria uma sombra confortável quando tudo o que tinha ao seu redor era escuridão e uma umidade que jamais chegou a se condensar.

Ventura cultivava um hábito, e isso era segredo, de ir à Biblioteca Pública ler e reler o mesmo livro. Jamais o emprestou. Apenas o lia, na mesma mesa de sempre, entre as estantes de literatura estrangeira, com autores de sobrenome que começam com a letra N até os que começam com a letra P. O livro não cito porque não interessaria a ninguém. Talvez já não interesse nem ao Ventura, mas algo o levava sempre até ele, e ficava transtornado quando chegava lá e alguém o havia emprestado.

Era uma tortura diária ir até aquelas estantes e não encontrar seu cúmplice de alguma coisa.

Quando devolviam o livro, era como reencontro de antigo amor. O dia todo era pouco para tudo o que Ventura tinha pra sentir naquelas páginas. Chegadas oito horas da noite, quando a biblioteca fechava, Ventura sentia como estivesse deixando sua amada no ponto, prestes a pegar o último ônibus, torcendo para que o amanhã chegasse tão rápido quando a tarde de hoje passou.

Todo dia foi assim, durante aqueles já não sei quantos anos.

Olhos

Ventura já não vai à biblioteca. Parece ter aprendido a viver sozinho. Perdeu a visão há cerca de alguns poucos anos. Tive certeza de que seria sua morte. Como viveria um homem sem mais poder reencontrar o amor de uma vida na mesma mesa de sempre, entre as estantes de literatura estrangeira, com autores de sobrenome que começam com a letra N até os que começam com a letra P?

Hoje  vive sentado na frente de casa, como quem espera a escuridão dividir o dia para se recolher e aguardar o seguinte. Mas sei que naquele eu a escuridão é a única companhia desde que seu amor ficou naquelas prateleiras empoeiradas.

Seus olhos, que outrora foram negros e desconfiados, agora são brancos e distraídos. Pouca coisa lembra vida naquele corpo que sente o peso do tempo e da distância de algo que já não existe. Permanecem ali, mirando um horizonte incerto, praticando a saudade.  Uma saudade que o leva a outros tempos, despertando uma nostalgia, que nada mais é do que a tristeza que ficou mais leve.

Tudo nele envelheceu, inclusive os olhos, agora tristes e domados. A única coisa que ainda é vida ali, além da respiração cada vez mais fraca é o contínuo movimento dos lábios. Como repetindo um mantra, passam os dias inteiros inquietos, devem pedir vida, ou descanso,  ou alguma coisa que não esteja ali, ou…

negros (tudo claro outra vez)

Mariana. Mariana era o nome dela, e sempre esteve aqui. jamais pude viver sem Mariana, sequer morrer consigo sem ela. desde que a conheci, tive duas mortes e sobrevivi, não sei o porquê. acho que viver é minha sina. não, nunca tentei suicídio, pois jamais me senti vivo a ponto de experimentar a vida dentro de mim. como seria capaz de esvaziar algo que nunca esteve cheio?

sempre achei que o infinito fosse tudo, mas com o tempo percebi que era bem pouco, uma coisa de literatura, algo inventado. o infinito é coisa de quem escreve, um universo que só existe no papel.

durante 1990 dias esperei Mariana, sempre na biblioteca pública, sempre lendo o mesmo franz pacars que nunca terminei.

“mentiras”, um bom título de livro, de um eterno diálogo que nunca chegou a me dizer nada. daquelas páginas lembro apenas que Mariana estava prestes a chegar, e ela chegava, dia após dia, como naquela vez em que voltou de viagem, uma semana em marabá, que me deu aquele abraço e pude a erguer a ponto de não sentir meus próprios pés no chão, até o dia em que não chegou mais.

por conta de outros tantos caminhos, outras tantas páginas, ela se foi, mas não da maneira como vão as pessoas dos filmes, em câmera lenta, com uma música que nos emociona e nos faz querer acreditar que o amor é o norte. se foi a passos largos, decididos, acompanhada pelo ecoar de suas pisadas naquela biblioteca vazia. eu fiquei, fiquei e dei de ombros, como fazem os indiferentes nas páginas dos livros. ninguém dá de ombros na vida real.

fiquei lá até o final do dia, às oito horas, quando a biblioteca fechou, naquela página 67. foi a última vez em que a vi. no último parágrafo da página 67.

desde então voltei todos os dias, à mesma sala, ao mesmo livro, às mesmas páginas. era nelas que eu vivia a ansiedade do retorno de Mariana. ela sempre chegaria entre aquelas linhas. 1990 dias sentindo ela voltar, chegaria a qualquer momento e seria uma surpresa agradável.

mas a escuridão era cada vez mais implacável, e um dia não encontrei a página 67, no outro não encontrei o livro, no outro a biblioteca, no outro a saída de casa. nunca mais encontrei nada, já não sei mais de mim. e a última visão que tenho em minha memória é a do último parágrafo da página 67,

“Passou a vida achando que morreria de amores, e precisou de todos os seus dias, segundo a segundo, para descobrir que apenas viveu deles. Para morrer seriam necessárias outras coisas.”

ao som dos sapatos de Mariana se distanciando passo a passo, cada vez menos sonoros.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1277

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1213

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski