
Era uma noite bonita, mas fria, com a Lua brilhando na escuridão e os casais na rua aquecendo a mão um do outro com o ar quente das próprias bocas, quando, pelo rádio, ouvi a nova oportunidade que a vida me apresentava.
Desde que cheguei neste país, com passaporte falso e dinheiro para apenas três dias de comida e hospedagem, fui obrigado a fugir correndo de um lado a outro. Depois de tudo o que fiz, é provável que fosse apenas o Karma esbofeteando minha face com a sutil ironia que só o universo seria capaz de providenciar. Mas com o passar das décadas, o costume de estar em movimento tornou-se tão intrínseco, que achei que só conseguiria ficar parado dentro de um caixão, e isso não figurava nos meus planos mais próximos. Foi quando, por um misto de fome e frio, me vi aceitando o emprego de taxista, que mantive até dias atrás. Não era dos piores, confesso. Eu não ganhava muito, mas o troco era suficiente para me manter. Não tão bem quanto na minha cidade, mas nunca é, não é mesmo? No final das contas, valia para conhecer pessoas novas, e quem sabe, até um conterrâneo.
Naquela noite eu levava um casal de turistas ao teatro para a apresentação de uma orquestra. Os dois eram jovens, e embora ele não tivesse ficado em um ângulo que pudesse ser visto pelo retrovisor, o casal me lembrava muito da minha juventude, e tudo o que deixei para trás quando saí da Alemanha. O tom da pele, os cabelos caindo levemente no ombro, o tamanho da cintura e o jeito de se encolher agarrando o braço dele, tudo naquela jovem lembrava a minha Kirsten. Aliás, depois destes mais de 50 anos, não sabia mais se a imagem que eu tinha correspondia com a verdade, ou apenas com os meus desejos, ainda que ela estivesse igual em todos os meus sonhos, desde o último minuto que olhei para aqueles olhos levemente esverdeados com uma manchinha mais escura no canto direito.
O sonho, inclusive, era sempre o mesmo. Em uma tarde cinza, fria, nos encontrávamos na praça em que nos conhecemos, e eu a abraçava como se abraça a alguém que já se foi há tempos. Na verdade, agora me lembro, com o passar dos anos algumas coisas mudaram. Logo no início, ela falava pra eu me cuidar, que sabia que eu não havia feito nada errado, e estaria me aguardando quando eu voltasse. Anos mais tarde, passou a perguntar se aquilo estava mesmo certo, e que talvez algumas pessoas tenham sofrido. Depois passou a me olhar com um pouco de receio, até que um dia falou que eu deveria me entregar. A conclusão continuava sempre a mesma: eu ignorava seu pedido, e dizia que não havia passado um dia sequer em que eu não pensasse nela, o que era a maior verdade da minha vida. Ela me abraçava e desaparecia virando fumaça, até que eu, desesperado por perder meu amor, acordava com falta de ar.
Mas naquela noite, ao ouvir o anúncio no rádio, o plano da volta se estruturou em minha cabeça tão rapidamente quanto ela desaparecia em meus sonhos. Decidi que Dávid faria a denúncia, para assim receber a recompensa, e eu me deixaria ser pego. Era o mínimo que eu poderia fazer por aquele homem, para pagar os tantos anos que me emprestou o táxi e dividiu o lucro comigo.
Agora estou aqui, algemado neste avião, com cinco oficiais me cercando, e mais alguns outros disfarçados ao longo da aeronave. O que está à minha esquerda mostra a capa do jornal, com a minha face estampada. A manchete, em enormes letras negras, noticiava com orgulho “Criminoso nazista mais procurado do mundo foi achado em Budapeste”. Para mim, muito mais do que isto, diz “László Csatáry volta para perto de sua Kirsten”. O resto é história.
escrito por André Petrini.
Foto: Stefan Klimmer / cc