Marco Antonio.
Dois caras trabalhando atrás do balcão de um bar enquanto uma mulher, a chefe, observa a cena de uma das mesas, onde está fazendo contas e pensando se havia feito certo em contratar um deles para trabalhar ali, ainda mais pelo fato de que ela só o fez porque o outro insistiu muito, dizendo que o cara era muito amigo dele, e que estava precisando de emprego depois de ter passado por uns problemas, e talvez fizesse muito sentido em tentar ajudar o cara convidando ele pra esse tipo de emprego, mas isso não era de forma alguma um comentário desrespeitoso com o bar, mas é que talvez fizesse sentido mesmo, porque alguma coisa tem que fazer sentido nessa vida, e a hora é sempre boa pra estender a mão pra um amigo. Ainda mais um de confiança.
Copos, pratos, talheres, detergente, panos, esponjas, torneira, água, fluxo, vida, morte, lápis, borracha, caneta, papéis, planilhas, tabelas, bônus para funcionários, contrato do recém-chegado, assinaturas, banco. Coisas. Um ex-jogador de futebol qualquer falando na televisão sobre a Copa do Mundo que está chegando, tentando vender algum produto ou serviço que ela não consegue entender exatamente qual, porque tem mais o que fazer. A trilha sonora do comercial, no entanto, é interessante. Ou pelo menos ela acredita que sim. Qual é mesmo o nome desse cara? Acho que ele era lateral. Sei lá. O banco fecha daqui a pouco. Banco de dinheiro. Banco de reservas. Banco de leite. Bando de palermas. Ninguém mais usa a palavra “palerma”, a não ser que seja pra fazer piada, ou pra parecer antiquado. Por que as pessoas tentam parecer alguma coisa ou outra? – Um dos quatro grandes mistérios da espécie.
Ainda falta muito tempo para o bar abrir oficialmente, mas os dois jovens estão concentrados em suas atividades. São bons funcionários. Não causam problemas. Também não criam soluções, mas pra esse tipo de função, esses caras bastam. Acho que eles moram juntos. Pelo menos, chegam todo dia juntos no trabalho. Não sei. Não interessa. São amantes? Amigos? Matam pessoas por dinheiro?
Acho que não.
O rapaz que foi contratado por sugestão e insistência do outro nada sabe sobre a negociação que seu amigo e a dona do lugar realizaram a este respeito, porque nenhum dos dois lhe disse nada, e não é só neste aspecto que o ditado que diz que a ignorância é uma bênção se prova aplicável e verdadeiro na trajetória de vida dele, cujo nome não é sabido, mas acredito que podemos chamá-lo de Dois, com inicial maiúscula, posto que se trata de um nome ou quase isso.
Há tanto que não sabemos.
O cara que mediou a tal negociação, a quem podemos chamar de Um, está planejando dizer para Dois que ele, Dois, lhe deve um favor, muito embora Dois já tenha essa noção bastante clara em sua cabeça, e se sinta inclusive bastante desconfortável com isso, porque ele, ainda Dois, não acha que a cobrança por uma gentileza seja um ato normal de uma amizade saudável ou correta. Mas há tanta coisa que não é saudável, correta ou clara (não é através destas palavras que ele pensa, mas não importa muito) nessa vida, que só mais essa não faz tanta diferença. E no fim de tudo, aquele emprego é apenas uma solução temporária, e tanto Um quanto Dois sabem disso.
Sexta-feira ou terça ou quarta. Tanto faz. Se só as menores das coisas fazem sentido, não percamos tempo tentando desvendar em que dia esse evento se passa. Mas parece meio de semana. Calmo demais. Pouco barulho. (a trilha sonora do nada).
Uma mulher linda adentra o bar. E tudo muda quando uma mulher linda entra em um lugar, qualquer que seja ele. Cenários são apenas cenários em tons pastéis, mas quando uma mulher linda passa da porta para dentro, eles mudam completamente. Ganham vida, cores, sons e cheiros. Para mais sobre o assunto, consulte a vida e observe os ambientes e as pessoas, prestando especial atenção ao evento que é a entrada de uma mulher bonita em um lugar.
Seguremos a respiração por uns segundos.
(…)
Concentração. Vamos tentar não parecer nervosos. Ainda mais em um momento como este, e na presença de tão bela moça. Tentar não parecer. Parecer.
(os grandes mistérios).
A porta do bar estava destrancada. O bairro é seguro. Dois está saindo das dependências do balcão do bar, e vai começar a limpar as mesas. Lança um “opa!” falsamente despretensioso para ela. Ela é linda, jovem, e sequer dirige o olhar para a dona do bar. Talvez ela nem saiba que a mulher sentada é quem detém o poder naquele lugar. Talvez não se importasse se soubesse. Às mulheres bonitas: vocês pedem licença para fazer o que fazem?
Se não pedem deveriam.
Chamaremos a moça linda de Mulher, com inicial maiúscula. Ela está ansiosa. Mal cumprimenta os dois funcionários do bar, seus amigos. “Amigos”, na verdade. Os três formam um grupo até que coeso. Ela abre a boca pra dizer alguma coisa, mas apenas Um está prestando a devida atenção. Dois é um cara meio desligado, e no momento está mais ocupado que Um. Dentre os três, Dois é o que tem menos noção do tamanho do ato que estão prestes a realizar juntos. Ele ainda não percebeu qual é o assunto que fez Mulher vir até eles nessa tarde tão vazia, e tão cheia de sensações menores.
Ela usa o balcão do bar como apoio para os cotovelos. Um pergunta se ela está bem. Diz que ela parece um fantasma de tão branca. Diz pra ela se sentar. Pergunta se ela está tremendo. Ele está um pouco confuso. Ela não diz nada sobre a tremedeira, que de fato está acontecendo. Ela prefere dizer algo muito mais importante que isso:
– Eu…encontrei…
A pausa depois de um comentário de uma mulher bonita.
(…)
Um e Dois entendem. Se entreolham. Como os zumbis dos filmes, naquele exato momento em que sentem o cheiro de gente viva, largam o que estavam fazendo e dirigem-se lentamente para encarar Mulher com mais propriedade. Estão sedentos por informações. Ela repete:
– Eu…encontrei…
Um sabe que é verdade. Dois está para descobrir.
A dona do bar foi ao banheiro. Os três sentam para conversar sobre o grande assunto, e sobre a pessoa que Mulher encontrou. Ela tem um plano. Ela sempre tem. Ela sempre vai ter.
Muy bueno, querido. Em alguns momentos me lembrou as aberturas do Lars Von Trier