escrito por Leandro Fagundes.
“Vem ouvir lindas histórias
que por seu amor sonhei.
Vem saber quantas vitórias, morena,
por mares que só eu sei.”– Chico Buarque, Morena dos olhos d’água.
A primeira vez que Délia foi lá em casa eu tinha seis ou sete anos, não me lembro bem. Com o passar do tempo, insistimos em querer lembrar de tudo o que passou conosco e quando não conseguimos inventamos. Comigo, não. Os fatos que em mim sobrevivem, lembro-os com um raro prazer de criança que esconde joaninhas em uma caixa de fósforos, alegrando-se cada vez que as vê ou as mostra aos amigos de escola. E do que não me lembro? Melhor nem pensar. Foram joaninhas que escaparam, perderam-se, incapazes de permanecerem ali para serem lembradas, e a isso preferiram o esquecimento – ou a liberdade –, o que aprovo sem contestar e sem nenhum ressentimento.
Mas, voltando a Délia, ela aparecia lá em casa sem avisar. Tanto que nas primeiras visitas eu a tomei como invasora, chegando a odiá-la com um ódio de criança que não é bem um ódio, mas um medo de que alguém chegue e roube seus brinquedos, seu espaço, você mesmo. E então só lhe resta odiar, um pouquinho, para se fazer presente e defender-se.
A presença daquela mulher em nossa casa me assustava e me fazia esconder no quarto, onde não se ouvia voz nenhuma, onde não havia nada, só a ausência de Délia. E essa ausência – saberia eu mais tarde – era um modo que arranjei para pensar nela, para dizer que eu precisava de suas visitas, pois negando a presença de Délia eu estava ao mesmo tempo afirmando a sua existência e a minha necessidade de senti-la perto de mim.
Lembro-me que depois me culpei por ter odiado Délia assim, por um dia ter querido mal a ela. Pois não sei bem como foi, mas a partir de um momento eu comecei a ver em Délia a minha salvação. E esperava, esperava e esperava suas visitas, mesmo às vezes sabendo que ela poderia não vir, mas o simples fato de pensar que talvez ela aparecesse já me fazia ficar contente. E em pouco tempo o que era aversão transformou-se em uma afeição sem tamanho.
Eu a esperava apoiado numa almofada de leão dourado para que pudesse alcançar a janela da sala. Quando ela enfim aparecia, abria o pequeno portão azul e depois olhava para mim na janela. Então eu ouvia o meu coração bater mais forte e ia me sentindo cada vez mais alegre, dava pulos e cantava, porque sabia que de alguma maneira cada visita de Délia traria algo novo para minha vida.
Das coisas que me lembro (ou não) com exatidão, uma é o rosto de Délia. Um rosto singular, de sobrancelhas grossas e lábios finos, cabelos quase sempre amarrados ou seguros por um arco. Tinha uma beleza encantadora aquela Délia dos meus seis ou sete anos, uma beleza de conto de fadas de que eu nunca me esqueceria. Lembro-me também dos doces que ela me trazia, doces de abóbora em forma de coração, e que eu comia como se fossem o próprio coração de Délia em minhas mãos. E ainda hoje, passado tanto tempo, ainda me lembro das coisas que ela me dizia, coisas ternas, simples, que hoje me fazem tanta falta, coisas como “minha criança”, “meu menino querido” ou “meu pequenino”. E também dos passeios que fazíamos, em que andávamos sempre de mãos dadas. Délia a me mostrar tudo, e eu mais interessado em sentir o suave de sua mão, os dedos finos e longos, a quentura gostosa deles entrelaçados nos meus.
Um dia, não sei por que razão, Délia sumiu e não mais voltou. Durante dias fiquei na janela esperando que ela aparecesse novamente, o que nunca aconteceu. Lembro-me que chorava e dava chutes na almofada de leão dourado, culpando-o pelo sumiço de Délia. Os outros estranhavam o meu comportamento, a minha falta de fome, o sono e o choro. – Eu disse que esse menino não estava bem!, diziam. Mas eles não entendiam, não podiam entender, somente eu, Délia e agora a ausência dela. Eles não entendiam que na minha inocência de criança eu fiz de Délia a minha primeira namorada, o meu primeiro contato com o mundo fora daquela casa. Fiz de Délia o meu souvenir d’enfance, a mais nítida das lembranças, a joaninha que insiste em permanecer na caixa de fósforos apesar das frequentes insistências para que ela saia.
Mas passado tanto tempo não distingo o que realmente aconteceu do que é invenção minha. Se realmente existiu alguém como Délia ou, então, se eu tenha existido dessa forma. Por essas e outras é que hoje me sinto preso, fechado, como se também estivesse numa caixa, à espera de que venha alguém abri-la, alguém como Délia, e me liberte sem dizer uma palavra.