Entre o conhaque e a cicuta 0 971

escrito por Murilo

Em um bar, dois homens praticam a famigerada filosofia de boteco. Curiosamente, um deles se chama Sócrates – mas mais devido ao jogador do que ao filósofo. Não por acaso, entre beber e filosofar, ele prefere a primeira opção, assim como o finado futebolista. No entanto, às vezes mistura as duas coisas, como agora é o caso.

– Você não precisa de muita coisa para ser feliz, sabia? – pergunta Sócrates ao outro.
– Ora, não me venha com essa filosofia barata. É claro que preciso.
– Vou te provar. Você está feliz agora, não?
– Não muito.
– Pelo menos um pouco feliz está. Olhe essa cerveja no seu copo, o bar ao redor… traz um pouco de felicidade, não?
– Sim, um pouco sim.
– Pois bem, agora me diga coisas que, se fossem diferentes aqui, te deixariam ainda mais feliz.
– Bom, para começar eu poderia estar bebendo uma cerveja melhor – dá risada.
– Então tá. Vai imaginando aí, enquanto eu encho seu copo, que essa Antarctica é na verdade uma Stout. Pode ser? Uma Guinness?
– Uhum – concorda.
– Imagine você bebendo uma Guinness, em um boteco melhor… o que mais?
– Umas gostosas também. Por todo lado.
– Tipo em uma…
– Não. Não esse tipo de lugar. As mulheres não estão cobrando nada.
– Entendi. E o que mais? – Sócrates enche os copos novamente.
– Ora, eu podia estar pegando uma dessas gostosas.
– Uma?
– Duas. Melhor duas. E lá fora eu teria um carro importado estacionado também.
– Que carro, um Camaro?
– Não – pensa um pouco enquanto bebe meio copo – Acho que um Mustang.
– Boa escolha. E nessa situação você está feliz para caralho?
– Com certeza.
– Mas poderia estar mais feliz ainda, não? – indaga, enquanto sinaliza para o garçon trazer outra garrafa cheia.
– Provavelmente.
– Veja só, você é um bon bivant, bebendo Guinness em Búzios, e está prestes a levar duas mulheres maravilhosas para o seu Mustang.
– É. Mas acho que eu ficaria ainda mais feliz se eu quisesse pegar essas mulheres há muito tempo, e agora estivesse conseguindo. E também se eu não tivesse que trabalhar no dia seguinte – riu-se.
– Hum… faça um esforço para se imaginar na cena. Você está conseguindo desfrutar de sua máxima felicidade?
O homem fecha os olhos e reflete, não antes de virar mais um copo de cerveja.
– Não sei. Estou feliz, mas sempre tem alguma coisinha que incomoda, não é?
– É verdade – concorda Sócrates – e o que o está incomodando agora?
– Pode parecer ridículo, mas o que mais está me incomodando é uma maldita vontade de mijar. Sabe como é, né? A cerveja…
– Isso, estamos chegando aonde eu quero chegar. O que você faz nessa situação?
– Vou no banheiro, é claro.
– Muito bem, imagine-se com toda a sua concentração agora. Você está em uma noite perfeita, acompanhado de mulheres perfeitas, com muito dinheiro e poucos compromissos. Você está no banheiro, mijando e pensando em tudo isso. Você está no ápice de sua felicidade?
– Sim, agora com certeza.
– Muito bem. E o que te fez chegar no ápice da felicidade?
– Ora, todas essas coisas que você disse que tenho. Dinheiro, mulher, saúde, sucesso…
– Pense bem. Tem certeza? – indaga Sócrates.
O homem pensa, pensa e responde:
-Tem razão. Não foi nada disso.
– E o que foi, então?
– A mijada. Foi a mijada. Nada no mundo é melhor do que uma boa mijada.
– Muito bem. Agora você compreende.

Foto: Tambako the Jaguar via Compfight cc

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Escala de Baumé 0 5032

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6535

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai