padrões 1 882

marco antonio santos

Uma senhora num gramado, e uma mulher descendo a rua, não em direção a ele, mas naquele sentido. Ainda há uma distância de uma quadra e meia a percorrer até o ponto, mas a moça que está caminhando já consegue perceber que tem alguma coisa estranha acontecendo ali. Ou nem estranha. Pelo menos diferente. No mínimo, a situação não obedece aos padrões de acontecimentos do dia a dia, e isso sempre chama a atenção. Estabeleçamos assim este ponto.

A senhora do gramado está fazendo alguma coisa com flores e mais flores. Trata-se de um tipo de escultura no chão, de uns três metros por três. Parece bonito. Parece. É bem colorida, pelo menos. Mas nem tudo que é colorido e demanda esforço pra ser feito resulta em um produto bonito, ou provém da vontade de se fazer algo bonito. Não que faça muita diferença (e na verdade não faz nenhuma). A senhora tem uns sessenta ou sessenta e cinco anos de idade, e está recolhendo flores e trabalhando na obra há uma meia hora, pelo menos. A rua é bem movimentada, e muitos motoristas e motociclistas que passam pela pista da esquerda acabam notando a cena e usando alguns poucos segundos tentando entender o que é aquilo. No entanto, o gramado está postado ao lado de uma via rápida, e nenhum carro ou moto passa a menos de quarenta quilômetros por hora por ali, e a essa velocidade é difícil prestar atenção mais detidamente em qualquer coisa que não o próprio trânsito, sempre cheio de gente apressada demais, atrasada demais e preocupada demais pra perder tempo com uma senhora qualquer e umas flores quaisqueres.

O começo da noite de uma terça-feira. As portas das escolas, um inferno. As ruas ao redor delas também. Os escritórios esvaziando. Os porteiros da noite de alguns prédios comerciais chegando aos seus trabalhos, ou chegando um pouco atrasados, para desespero dos que estão cumprindo turno, e vão ter que esperar o próximo ônibus para voltarem para suas casas, algumas delas muito longe. Alguns destes porteiros que aguardam os colegas atrasados acreditam que aquela brincadeira que versa sobre a suposta enorme quantidade de ônibus quando não precisam ir pra lugar nenhum, e a pouca quantidade quando precisam é verdadeira. Outros porteiros nunca ouviram essa história na vida. Outros porteiros têm veículos próprios para ir pro trabalho e também pra aproveitar os fins de semana levando a família para algum lugar, ou para irem sozinhos mesmo, se não têm família. Alguns advogados não têm carros. E algumas crianças que estão saindo de suas escolas vão reprovar neste e em outros anos.

A mulher que desce a rua, cujo nome é Graça, está aflita com a conta de água que chegou na casa dela ontem. E a aflição é compreensível. Afinal, é comum que a cobrança dessa bendita sempre venha por volta de trinta reais por mês mas, dessa vez, o valor marcado no papel é de trezentos e trinta e cinco reais. Apesar de ser inverno, ninguém toma banhos tão longos na casa dela que, aliás, fica vazia durante a maior parte do dia. E, a partir de certa altura da noite, é comum que Graça, seu esposo, seu filho e seu irmão estejam dormindo, e não tenham como usar tanta água. Só um cano quebrado explicaria o disparate. E de fato explica, porque a primeira coisa que ela fez quando viu o valor assustador foi justamente chamar seu irmão para averiguar o caso. Ele verificou. Ele pediu dinheiro ao cunhado, dono da casa. Ele comprou peças numa loja de material de construção. Ele consertou o vazamento. Ele merece um abraço e um parágrafo.

O irmão de Graça é conhecido por um apelido nada elogioso, que não decorre da criatividade de ninguém, e nem é especialmente engraçado, ou tem uma história surpreendente por trás. É um apelido óbvio, que não carrega em si nenhuma tinta de mistério ou exclusividade. Ele é conhecido como Gordo. Gordo é o irmão mais velho de cinco, e acabou de se separar da esposa depois de uma briga (nunca é só uma) que assustou muitos de seus ex-vizinhos, e inclusive ele próprio. Em decorrência dela, se mudou para a casa de Graça por uns dias, e come, dorme e vive sob o olhar desconfiado do cunhado, que nunca nutriu simpatia pelo tipo, e nunca se envolveu com as brigas entre Gordo e a ex-esposa dele. Portanto, nada tem a ver com a separação. Gordo sai para o trabalho muito cedo, e volta pra casa por volta das cinco da tarde. Gordo não acredita na ideia de que um emprego defina uma pessoa. O resto da família discorda desse tipo de pensamento. A ex-mulher dele ainda o ama, e ele ainda a ama, mas talvez seja melhor manter essa distância por um tempo, e esfriar a cabeça. Gordo sabe que sua irmã chora sozinha volta e meia, quando se tranca no banheiro de madrugada. Ele não consegue entender o motivo. Ele sofre de insônia e dorme, quando consegue, num colchão na sala, de forma que finge que é isso que está fazendo quando ouve a irmã levantar da cama, calçar os chinelos e se dirigir ao banheiro. E ela chora, e chora, e ele não tem coragem para levantar e conversar com ela sobre o assunto.

Graça está a uma quadra do gramadão, e a senhora parece contente com o que está fazendo, seja lá o que for. Mas Graça não está contente com aquilo, e com muitas outras coisas. O ato com as flores parece gratuito, e isso a incomoda. A senhora não está com mais ninguém ali, e parece que ela só queria arranjar algum jeito de aproveitar as folhas e flores caídas no chão. Até que horas as casas lotéricas ficam abertas? Será que parcelam essa conta absurda? Com quem será que Graça tem que falar pra verificar isso?

A senhora percebe a moça se aproximando cada vez mais do espaço, e não se incomoda, porque tem mais o que fazer. Nem ela sabe direito o motivo de ter começado com aquele ritual, que é longo, mas prazeroso. O tempo é relativo por definição ou convenção ou algo assim. E o pensamento de que nem tudo precisa ser útil a conforta todas as vezes que lhe dá na telha fazer esse tipo de coisa… que não é definido por nenhuma palavra que existe, mas que talvez seja por uma que está pra nascer em algum canto qualquer do mundo. De preferência, que seja um canto onde se fale português, pra ela entender quando tomar contato com o termo. Esses dias, resolveu comprar tinta. Comprou, e pintou o portão de casa, mesmo que a pintura anterior fosse recente. Seu esposo achou estranho. Ela adorou. Ela não gosta de lavar a louça depois de cozinhar, mas acaba lavando quando seu marido ou seus filhos não o fazem. A idade. Os anos setenta. A morte que ela deseja a todos os aduladores e aos covardes, num inferno semelhante ao que se configura nas portas de escolas em todo fim de tarde de segunda a sexta-feira. Será que ela tinha comprado margarina e ovos pra casa, quando esteve no mercado hoje um pouco mais cedo? Só olhando na cozinha pra lembrar. Ela decide ligar para o marido quando a moça que estava descendo a rua e olhando para ela e para as flores passa por ali. Talvez a inspiração para o ato de telefonar tenha vindo da cara de estranhamento que a jovem fez, através de algum mecanismo que nem a senhora nem a moça ousariam compreender. Essa menina deve ter uns vinte e cinco anos, e parece bem nervosa. Sei lá. Que seja. A bateria do celular está acabando. Ela liga para o esposo.

E diz:

– Oi. Tudo bem? Só liguei pra dizer que te amo. Você pode vir me buscar na pracinha? É que eu tô cansada e não quero voltar andando sozinha pra casa, sabe?

Ele sabe, porque sempre soube.

Mas não se sabe o que ele disse.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6510

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai