Ela entrou num ônibus rumo à residência de um casal de amigos que moram na zona norte de Curitiba. A viagem partiria do centro e seria mais uma vez rápida e tranquila, não fosse o que foi.
Era uma tarde quente de sábado, e lá ia a jovem para essa reunião na qual fariam, os três, coisas que amigos fazem, como rir de bobagens e entrecortar momentos descontraídos com conversas sobre vida, morte e tudo que acontece entre nosso começo e nosso fim.
Resolveu descer do ônibus três quadras antes de onde normalmente faria, para caminhar um pouco, esticar as pernas e aproveitar o efeito do vento ameno que batia naquele dia de tanto calor. Mas havia um problema na área do gramadão de uma esquina, que antecede, no sentido do trajeto que ela estava percorrendo, três quadras de futebol de areia e pequenas lojas que se sustentam devido à quase autossuficiência comercial que pairava sobre aquela vizinhança, como se um manto de prosperidade tivesse se instaurado ali, a despeito de explicações lógicas e a favor da felicidade de quem residia naquele pedaço mágico do mundo.
Haviam 27 homens de idades variadas empunhando facas na área logo a frente, e eles não estavam poupando ninguém que passava por ali de sua violência, tão imensa quanto as intenções dos que amam ou o desespero de quem não o faz. A cena era bizarra, porque eles não praticavam sequer o esforço de correr atrás de suas vítimas, preferindo, ao invés disso, que elas viessem a eles enquanto sorriam descompromissadamente. O sol se escondeu atrás das nuvens para não presenciar aquele fato tão estranho e, em decorrência disso, o lugar passou a emanar uma energia de medo, ansiedade e principalmente histeria, curiosamente silenciosa. Todo mundo que estava ao lado da moça precisava passar para lá, mas o preço para que isso acontecesse estava bastante claro e não era nada justo. A ameaça era evidente e todo mundo ia ter que sangrar para atingir aquele objetivo. O que sempre pareceu simples havia agora se tornado inalcançável, e uma força estranha impelia ao fracasso todos que ousavam tentar o sucesso naquela empreitada.
Ela congelou. Viu uma senhora de 60 anos ser esfaqueada por entre as costelas do lado esquerdo do corpo e resolveu ligar para os amigos, já que lhe ocorreu que a mera presença deles resolveria a situação. Parecia óbvio que eles saberiam como tirá-la daquela, como já souberam outras vezes em outras circunstâncias, e como haveriam de saber em tantas outras no futuro.
Mas a tremedeira nas mãos a impedia de acertar as teclas do número desejado no telefone. Resolveu desafiar o bom senso e começou a correr para lá, tentando se esquivar dos possíveis algozes como podia, num grande jogo de damas, já que a relação entre o jogo de xadrez e a morte já foi uma analogia melhor explorada em outras situações. Não foi atingida, mas quando chegou à última linha de seus potenciais assassinos, não teve forças para finalmente passar para a área segura que eles escondiam por detrás de olhares hipnóticos e determinados. Voltou ao ponto de partida, ainda muito nervosa. Encarou os homens mais uma vez.
Acordou e se viu flagrando formas ambulantes pelo quarto.
Aquelas paredes já somam mais de 50 anos de idade, e nunca haviam parecido tão ameaçadoras quanto pareceram naquela madrugada. As cortinas azuis escondiam uma noite enorme do lado de fora, e um inegável espírito de desamparo do lado de dentro. Ela voltou a dormir, depois de certo esforço. Jamais compreenderá plenamente o que se passou naqueles momentos eternos dentro do universo paralelo em que os sonhos existem e nos acontecem.
Marco Antonio.