derradeira 0 752

por Rafael.

Hoje acordei pensando em você. Querendo poder te velar, até que acordasse e eu fosse a primeira visão que tivesse. Queria ser eu o motivo do seu primeiro sorriso, iluminado pelo amarelado do sol das primeiras horas.

Hoje senti uma falta sua, meu filho. Uma saudade qualquer de algo que ainda não sei sentir. Queria eu poder tê-lo em meus braços, e planejar toda uma eternidade juntos.

Lado a lado cresceríamos. Com você o mundo seria finalmente digno de uma vontade minha por um amanhã.

Queria estar agora diante de você para ver seus primeiros passos. Uma mínima distração e você cairia sentado (com as pernas quase cruzadas), como todo mundo um dia cai, já chorando, talvez por pena de si mesmo,  e eu já estaria ao seu lado, pois está tudo bem quando estamos juntos.

Queria eu, agora, reconhecer em seus grunhidos um papai, ou até mesmo um te amo (alguns atravessamos uma vida inteira sem ouvir isso). Fecho os olhos e posso tocar sua barriga, suas mãozinhas, seus pezinhos, nos quais eu faço cócegas para encher o mundo de amores ao ver o seu sorriso em gengivas.

Finalmente viria sua primeira independência. Seria obrigado a lhe soltar num mundo em que as ruas ralam, os vidros cortam e as boladas no nariz sangram. Sem contar a eterna dor incurável que um espinho pode causar no mindinho do pé. Por desconhecer antídotos, teria de lhe deixar viver tudo isso, pouco a pouco.

Hoje o sol deu a cara, a temperatura está agradável e é lamentável eu ter que sair da cama, enfrentar o mesmo trânsito de sempre para mais um dia burocrático como fosse uma segunda-feira qualquer.

Ninguém vive as coisas de verdade por aqui, filho. As pessoas não suportam nada por muito tempo. Tudo é muito rápido, quase nada é sincero. Vivemos combatendo as dores de uma vida todos os dias, e esta é a única maneira de se manter vivo. Precisamos de motivos. Mas nessa sua infância, esta realidade não existiria, pois ainda estaria distraído demais com as curiosidades de quem ainda não se fechou para a vida.

Falo contigo, pois não compreenderiam a necessidade que sinto de estar ao seu lado. Estão todos apressados demais para me compreender, entender você. Na verdade, pouco se importam.

Só eu sei que não podemos estar juntos, para te fazer dormir, te dar de comer. Como eu queria poder olhar no fundo dos seus olhinhos e saber que você está bem. Ninguém vê o quanto é ruim que tenhamos que estar sozinhos.

Hoje seria um dia ideal para caminhar contigo até algum horizonte eleito ao acaso, da maneira que nos acostumaríamos a andar em dias ensolarados, te desafiando a soletrar palavras cada vez mais difíceis. p-a-s-s-o-c-a; b-a-l-a-n-s-s-a. Você teria herdado de mim a dificuldade em usar a cedilha, e eu seria o único no mundo a achar grassa.

Munidos de nossos por quês, descobriríamos um novo mundo a cada passeio. Voltaríamos maiores.

Eu me sentiria o maioral das finanças te desafiando com os números. Sete mais onze; dezoito menos nove. Você acertaria todos de bate pronto, e eu jamais lhe ensinaria que o mundo tentaria lhe convencer de que esta matemática é que deve reger os seus dias. Mais trabalho, mais dinheiro, menos conforto, menos vida. O resultado é um só, mas com infinitas interpretações.

O infinito? Eu diria a você que é muita coisa, que você seria jovem demais pra entender, mas com um aperto no peito por saber que provavelmente você chegaria à velhice sem saber explicar a mesma coisa aos meus netos.

Hoje, meu filho, eu queria lhe dizer pra ter paciência, que para estas coisas todas que não fazem sentido, aos poucos você adquire a paz necessária para interpretá-las. As coisas e a vida são assim: aos poucos. Geralmente temos os olhos pequenos demais para enxergar os gigantismos no momento exato do presente.

Mas no fundo eu sei que cometeria o mesmo erro que todos os pais cometem, uma hora ou outra, uns mais outros menos. Quereria eu que você fosse um prolongamento de mim? Alimentaria o meu ego a ponto de querer que alguém olhasse o homem que você seria e dissesse que eu fiz um bom trabalho?

Não me vejo imune a isso, pois já tenho aqui uma pequena lista do que lhe ensinaria. Por isso, filho meu, preciso de você aqui, comigo, só hoje, pra sentir este dia lindo de sol, em que nada me tira desta cama.

Preciso de você, meu filho, para que sussurre em meu ouvido que eu preciso levantar, preciso continuar.

A vida inteira dói, os remédios estão ali, em meio aos livros que eu sei exatamente quais daria para você ler em cada momento da sua vida.

Os remédios estão ali e eu já sei o que fazer. Pena não te ter. Pena não estar aqui para me ver levantar.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1276

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1212

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski