Forte e sem açúcar 0 804

Já fazia muito tempo desde que Dona Alice pedira, com a voz baixa e suave, um cafezinho à aniversariante e ainda não o recebera. Pessoas sentaram-se à mesa com ela, comeram, beberam, experimentaram as famosas sobremesas da anfitriã, levantaram-se, outra rodada de pessoas seguiu o mesmo fluxo, e Alice continuava com a sensação de garganta seca e cabeça pesada. É como quando você acorda esperando que o dia seja maravilhoso e ele não é, simplesmente porque você esperava que fosse. Parte das coisas boas da vida está no inesperado e, a essa altura, nem o melhor café do mundo vai superar o amargor daquela demora. Depois de tantas artrites, Alice achava uma falta de caridade fazer um ser humano passar tanto tempo esperando por um simples café. Preto, forte e sem açúcar, como havia sido a vida inteira.

É um fato bem conhecido para essa senhora, de que quando se chega a certa idade e ela fica aparente em sua pessoa, o velho vira também um ponto turístico, tal qual as pirâmides, as torres e os monumentos. As pessoas olham, admiram e ficam se perguntando como aquilo, depois de tantos anos, continua de pé. Alice, que já não se levanta com a mesma facilidade de sua juventude, aproveita a curiosidade alheia para lembrar e se felicitar com a própria vida, como quem relê continuamente o mesmo livro porque já não há mais tempo para começar um novo.

– 97 anos. Eu acho que é isso. Deve ser 96 ou 97… Não lembro se já fiz aniversário esse ano. Isso, foi 1915. Você é bom pra fazer conta de cabeça, heim? Sabia que eu era professora? Me aposentei aos 43, sem nunca ter uma falta e nenhum aluno reprovado. Depois eu fui dar aula de piano, pra ocupar a cabeça, sabe? Mas foi aí que eu me encontrei. Passava o dia inteiro ouvindo e tocando os meus queridinhos. Você conhece Strauss? Ahhh, então eu vou pedir pro meu filho gravar um disco pra você. É maravilhoso.  Eu ouço todo dia, antes das minhas orações. Meu filho? Tem 55, o meu menino. Só tive um, sabe? Pra poder educar direito, e ensinar tudo com bastante cuidado. Agora eu tô morando com ele, porque ele é medico e insistiu que era pra poder cuidar de mim. Assim é bom, né? Ainda tenho umas coisas pra ensinar pra ele, e posso ficar perto dos pequenos. Ele é tão atrapalhado, que é capaz de qualquer dia fazer miojo na panela de pressão hahaha. Ainda bem que tem o moço que cozinha pra gente lá. E o meu café, heim? Ainda não trouxeram. A sua esposa está aqui? Ela não é ciumenta? Ah, que bom… tem muita mulher ciumenta hoje em dia. Sabe, eu fui casada por 52 anos, 1 mês, 14 dias, 6 horas e 28 minutos e desejo que vocês sejam tão felizes quanto eu fui. É fácil, viu? Só precisa ter paciência, porque ninguém é perfeito. E estar com alguém que goste de ler. Você gosta de ler? Que bom! Eu conheci o meu velhinho numa praça, num dia lindo e ensolarado. Como todo bom romance, né? Eu estava lendo Dom Quixote quando ele sentou ao meu lado e falou a minha parte preferida do livro: “Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha juntos é o começo da realidade”. E aí eu fiquei toda apaixonada, porque quando você encontra alguém que gosta do mesmo livro que você, é como se tivesse reencontrado um amigo de infância depois de muito tempo. Por mais que ele não saiba da sua vida hoje, vocês continuam compartilhando uma história. E depois disso eu compartilhei uma vida inteira com aquele homem que fez a minha história ser um sonho. Ahhh, chegou meu cafezinho! Nossa, não deu nem uma xícara! É por isso que eu te disse, moço: só precisa ter paciência, porque senão você nunca chega no felizes para sempre. E se é pra parar o livro no meio, é melhor nem começar.

André Petrini
Foto: RobW_ / cc

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Escala de Baumé 0 5003

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Dai-me Amor 0 3205

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”