Até que ultrapassou a linha do horizonte 0 841

por Rafael

Tobias passou o dia inteiro com Dalila, que pulava e se equilibrava entre seus pensamentos, um a um. Desde que acordou não havia estado só. Dalila estivera sempre ali, prestes a cair para dentro de seu corpo.

Não era saudade, não era rancor, era apenas uma destas lembranças que parecem prestes a nos revelar algo, mas sequer indicam alguma direção.

Tobias passou o dia entre a curiosidade e a apreensão, como fosse ele o responsável pelo equilíbrio de Dalila. E talvez fosse mesmo. Não soube de qualquer possível explicação para a estranheza daquela terça-feira, desde as 8:40 da manhã, quando finalmente travou em definitivo o despertador e se pôs em pé, até aquelas 8:37 da noite, quando viu Dalila do outro lado da rua, onde tomava um copo de cerveja iluminada pelo alaranjado da luz dos postes da rua.

Era um bar daqueles pequenos, onde se pega o que se quer lá dentro e consome lá fora, com ou sem chuva. Estavam ali, agora, separados por uma rua, três anos e algumas mentiras.

O fato é que Tobias viu Dalila e sentiu que ela caia de seus pensamentos, mas não pra dentro de si.

Tobias retornou um tempo não cronológico e se viu no sonho que teve com Dalila na noite anterior. Um sonho daqueles que nos causam um desconforto, que só não classificamos como pesadelo pois não é exatamente medo o que sentimos.

Era uma cachoeira, uma cachoeira enorme, de uma água barrenta. Lá estavam Tobias e alguns amigos, que nadavam à beira do precipício para onde as águas se lançavam. Era um dia escuro, pouco após a chuva. As águas pareciam carregar o peso de outros lugares.

Os que se aventuravam no rio saltavam de uma pedra, a cerca de vinte ou cinquenta metros (nada é constante nos sonhos) da grande queda. A corredeira os levava até que se agarravam no galho da árvore arcada sobre o vão que bebia toda aquela água.

Tobias sentiu o frio na barriga de todas as duas ou quinze vezes que se lançou naquelas águas e confiou sua vida ao esforço de seus braços e daquela árvore que balançava seu corpo no vazio a cada investida.

Até que voltou à pedra-plataforma. Desta vez era Dalila, e apenas ela o aguardava lá, pois queria também esta sensação de lançar-se a um futuro incerto, confiando apenas em suas próprias forças para dar conta de uma vida.

O desconforto que preencheu Tobias foi como se já houvesse existido, como ocupasse um espaço que já fora seu.

Apenas disse que sim com a cabeça, indicando o caminho.

Dalila mergulhou em um salto lindo, onde brilhou, como o sol abrisse um único vão entre as pesadas nuvens para iluminar Dalila, que curvou seu corpo no ar e perfurou a água, que a absorveu contornando toda a sua existência, primeiro os dedos das mãos, acolhendo os braços, engolindo suas curvas, suas tão brancas pernas, deixando por último os (tão admirados por Tobias) pés de Dalila. Pouca água espirrou deste mergulho. Ela permaneceu em outro mundo por um tempo impossível de se precisar.

Até que emergiu a poucos metros da imensa queda d’água. Seu braço esquerdo esticado a poucos centímetros da árvore envergada sobre o rio, emoldurados pela linha da queda eminente (que fazia as vezes de horizonte) e das margens, no último momento antes da eterna descida, formaram a fotografia que manteve Tobias no extremo desconforto, materializado pela imagem da Dalila ali, onde tomava um copo de cerveja iluminada pelo alaranjado da luz dos postes da rua.

Após reviver seu sonho durante alguns minutos eternos, Tobias retornou a si, onde se sentia mais leve ao perceber que as razões do seu espinhoso desconforto haviam sido transformadas. Sabia agora que não caberia a ele o auxílio para que Dalila alcançasse o galho que lhe possibilitaria balançar os pés sobre o precipício.

Tobias sentia que já não seria a questão de perdoar, pois já havia perdoado Dalila. O que está em jogo é que, com o perdão, excluiu o espaço de Dalila em sua vida. Dalila deixou de existir. O que sentiu Tobias já não era desconforto, mas ainda é cedo para ser definido. Mas é algo leve e sincero, como o balançar do galho de uma árvore, que sempre estará de acordo com o vento que passa por si.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5065

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.