por Rafael
Tobias passou o dia inteiro com Dalila, que pulava e se equilibrava entre seus pensamentos, um a um. Desde que acordou não havia estado só. Dalila estivera sempre ali, prestes a cair para dentro de seu corpo.
Não era saudade, não era rancor, era apenas uma destas lembranças que parecem prestes a nos revelar algo, mas sequer indicam alguma direção.
Tobias passou o dia entre a curiosidade e a apreensão, como fosse ele o responsável pelo equilíbrio de Dalila. E talvez fosse mesmo. Não soube de qualquer possível explicação para a estranheza daquela terça-feira, desde as 8:40 da manhã, quando finalmente travou em definitivo o despertador e se pôs em pé, até aquelas 8:37 da noite, quando viu Dalila do outro lado da rua, onde tomava um copo de cerveja iluminada pelo alaranjado da luz dos postes da rua.
Era um bar daqueles pequenos, onde se pega o que se quer lá dentro e consome lá fora, com ou sem chuva. Estavam ali, agora, separados por uma rua, três anos e algumas mentiras.
O fato é que Tobias viu Dalila e sentiu que ela caia de seus pensamentos, mas não pra dentro de si.
Tobias retornou um tempo não cronológico e se viu no sonho que teve com Dalila na noite anterior. Um sonho daqueles que nos causam um desconforto, que só não classificamos como pesadelo pois não é exatamente medo o que sentimos.
Era uma cachoeira, uma cachoeira enorme, de uma água barrenta. Lá estavam Tobias e alguns amigos, que nadavam à beira do precipício para onde as águas se lançavam. Era um dia escuro, pouco após a chuva. As águas pareciam carregar o peso de outros lugares.
Os que se aventuravam no rio saltavam de uma pedra, a cerca de vinte ou cinquenta metros (nada é constante nos sonhos) da grande queda. A corredeira os levava até que se agarravam no galho da árvore arcada sobre o vão que bebia toda aquela água.
Tobias sentiu o frio na barriga de todas as duas ou quinze vezes que se lançou naquelas águas e confiou sua vida ao esforço de seus braços e daquela árvore que balançava seu corpo no vazio a cada investida.
Até que voltou à pedra-plataforma. Desta vez era Dalila, e apenas ela o aguardava lá, pois queria também esta sensação de lançar-se a um futuro incerto, confiando apenas em suas próprias forças para dar conta de uma vida.
O desconforto que preencheu Tobias foi como se já houvesse existido, como ocupasse um espaço que já fora seu.
Apenas disse que sim com a cabeça, indicando o caminho.
Dalila mergulhou em um salto lindo, onde brilhou, como o sol abrisse um único vão entre as pesadas nuvens para iluminar Dalila, que curvou seu corpo no ar e perfurou a água, que a absorveu contornando toda a sua existência, primeiro os dedos das mãos, acolhendo os braços, engolindo suas curvas, suas tão brancas pernas, deixando por último os (tão admirados por Tobias) pés de Dalila. Pouca água espirrou deste mergulho. Ela permaneceu em outro mundo por um tempo impossível de se precisar.
Até que emergiu a poucos metros da imensa queda d’água. Seu braço esquerdo esticado a poucos centímetros da árvore envergada sobre o rio, emoldurados pela linha da queda eminente (que fazia as vezes de horizonte) e das margens, no último momento antes da eterna descida, formaram a fotografia que manteve Tobias no extremo desconforto, materializado pela imagem da Dalila ali, onde tomava um copo de cerveja iluminada pelo alaranjado da luz dos postes da rua.
Após reviver seu sonho durante alguns minutos eternos, Tobias retornou a si, onde se sentia mais leve ao perceber que as razões do seu espinhoso desconforto haviam sido transformadas. Sabia agora que não caberia a ele o auxílio para que Dalila alcançasse o galho que lhe possibilitaria balançar os pés sobre o precipício.
Tobias sentia que já não seria a questão de perdoar, pois já havia perdoado Dalila. O que está em jogo é que, com o perdão, excluiu o espaço de Dalila em sua vida. Dalila deixou de existir. O que sentiu Tobias já não era desconforto, mas ainda é cedo para ser definido. Mas é algo leve e sincero, como o balançar do galho de uma árvore, que sempre estará de acordo com o vento que passa por si.