Diagnósticos flutuantes 1 985

por Rafael

Meningioma. Este era o nome do tumor que lhe explodiria a cabeça dentro de dois meses, com sorte três. As convulsões, que eram esporádicas e inexplicáveis até então, passariam a ser a rotina que lhe acompanharia até que definhasse.

Em termos técnicos foi algo em torno disso que Pérsio ouviu de seu médico no final da manhã de hoje, mas tudo poderia se resumir a uma simples sentença de morte. Pela primeira vez Pérsio a encarou como certa e não como uma solitária possibilidade.

Ainda no consultório disse que estava tudo bem, que já esperava pelo pior, que faria o tratamento necessário e cuidaria do resto de sua vida. Pegou a lista de recomendações e os próximos passos para iniciar suas terapias e voltaria para casa.

Na rua, nada viu. Apenas pensava que finalmente havia chegado a hora de colocar em prática os planos que executaria algum dia. No ponto de ônibus ignorou a presença de todos, inclusive de vizinhos seus, mas sem maldade, apenas porque agora não poderia desperdiçar suas atitudes com protocolos.

Meia hora depois o ônibus passou (eles sempre demoram aos sábados, você nunca acerta o horário em que eles passam).

Com o ônibus cheio de lugares vazios, Pérsio optou por um banco acompanhado por outro, também vazio, como forma de possibilitar ao destino a chance de colocar uma pessoa ao seu lado.

Enquanto isso não acontecia, tirou sua caderneta do bolso e, com a inseparável caneta de tinta verde, começou a escrever, como maneira de sentir algo além da superfície amortecida em que flutuava.

Escreveu cerca de duas mil letras. A palavra injustiça apareceu uma vez, mas não relacionada ao seu tumor, que foi mencionado treze vezes naquelas linhas verdes, mas nenhuma de maneira negativa. Já a palavra carinho foi desenhada com desdém vinte e sete vezes, relacionada a oito nomes. Elian, Léa e Carlo foram os que mais receberam este sentimento. Oito, seis e seis, respectivamente. Além de carinho, Léa foi a que mais apareceu naquela espécie de inventário metafísico. Na última menção, Pérsio admitia que estava errado quando dizia que tudo o que tinham vivido juntos havia ficado num passado qualquer, pois nada fica para trás, sempre seremos algo disso ou à partir daquilo.

O ônibus fez seu trajeto completo três vezes sem que Pérsio olhasse além da ponta de sua caneta de tinta verde que tanto de si havia dito. Até que decidiu descer em um ponto qualquer, a fim de metabolizar sozinho todo aquele mundo que saltava à sua frente para que fosse finalmente sentido. Os pássaros gritavam, as pessoas pediam-lhe um abraço, o policial um sorriso.

Sentada num banco de praça uma mãe-menina ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, quando se tem um seio na boca, com tanta vida a lhe oferecer. Sob o banco um gato dormia um sono invejável, do qual logo despertou e se espreguiçou da maneira mais prazerosa do mundo.

Na sombra de uma árvore um casal adolescente trocava carícias e provavelmente as juras de um amor tão intenso quanto efêmero, que Pérsio sorriu sem perceber, pois carregava um tanto de amor (ainda não compartilhado) consigo.

De repente a plenitude dava as caras a Pérsio, que pensou que momentos tão intensos quanto estes, que se bastam independentemente da finitude de um mundo, seriam equivalentes ao que sente um suicida ao ajustar a corda em torno de seu pescoço. Nada mais importa.

Sentado num banco do canto da praça, Pérsio retirou novamente do bolso a caderneta e voltou a escrever em verde.

Começou tentando descrever o que via ao seu redor, mas logo caiu na solidão que sempre pareceu nortear os seus dias.

Pérsio passou grande parte dos seus vinte e sete anos buscando bastar a si próprio, pois havia lido em algum lugar que o ser humano é um ser solitário, que inevitavelmente se descobre só, e que é preciso estar preparado para isso. Mas jamais conseguiu.

Dia após dia via-se cercado por seus amigos, todos escritos nas linhas verdes anteriores. Jamais conseguiu um desprendimento, e por isso se sentia frágil para viver a inevitável solidão que lhe engoliria em alguma vereda.

Linhas verdes se seguiram, mais por vaidade que por conteúdo, até que Pérsio concluiu que na verdade seus amigos, todos eles, um a um, prepararam-no para a vida intensa que precisava ser vivida, pois jamais seria obrigado a conviver com a solidão, que esta era a sentença dos que estavam condenados a viver além do que mereciam.

E agora, ali, naquela praça onde centenas de pessoas desconhecidas passavam com pressa, rumo a destinos incertos, Pérsio não sentia pressa alguma, enquanto se lançava à deriva no fluxo do tempo, onde já não estaria só, sem se importar em incorporar o diagnóstico médico impresso em tinta preta no papel branco que trazia amassado no bolso esquerdo de sua calça azul.

E olhando uma desconhecida, que parecia esperar alguém, sentada no banco em frente ao seu, ao lado da mãe-menina que ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, apaixonou-se e escreveu em verde, enfeitando o verso do diagnóstico oncológico:

racionalmente olhando você:

não é maravilhoso que seus um-metro-e-sessenta-e-dois entrem pelos meus olhos-tão-pequenos e se agigantem dentro de mim, preenchendo cada espaço dos meus um-metro-e-oitenta-e-tantos?

mandei a racionalidade às favas quando cheguei em você.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6539

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai