por Rafael
Meningioma. Este era o nome do tumor que lhe explodiria a cabeça dentro de dois meses, com sorte três. As convulsões, que eram esporádicas e inexplicáveis até então, passariam a ser a rotina que lhe acompanharia até que definhasse.
Em termos técnicos foi algo em torno disso que Pérsio ouviu de seu médico no final da manhã de hoje, mas tudo poderia se resumir a uma simples sentença de morte. Pela primeira vez Pérsio a encarou como certa e não como uma solitária possibilidade.
Ainda no consultório disse que estava tudo bem, que já esperava pelo pior, que faria o tratamento necessário e cuidaria do resto de sua vida. Pegou a lista de recomendações e os próximos passos para iniciar suas terapias e voltaria para casa.
Na rua, nada viu. Apenas pensava que finalmente havia chegado a hora de colocar em prática os planos que executaria algum dia. No ponto de ônibus ignorou a presença de todos, inclusive de vizinhos seus, mas sem maldade, apenas porque agora não poderia desperdiçar suas atitudes com protocolos.
Meia hora depois o ônibus passou (eles sempre demoram aos sábados, você nunca acerta o horário em que eles passam).
Com o ônibus cheio de lugares vazios, Pérsio optou por um banco acompanhado por outro, também vazio, como forma de possibilitar ao destino a chance de colocar uma pessoa ao seu lado.
Enquanto isso não acontecia, tirou sua caderneta do bolso e, com a inseparável caneta de tinta verde, começou a escrever, como maneira de sentir algo além da superfície amortecida em que flutuava.
Escreveu cerca de duas mil letras. A palavra injustiça apareceu uma vez, mas não relacionada ao seu tumor, que foi mencionado treze vezes naquelas linhas verdes, mas nenhuma de maneira negativa. Já a palavra carinho foi desenhada com desdém vinte e sete vezes, relacionada a oito nomes. Elian, Léa e Carlo foram os que mais receberam este sentimento. Oito, seis e seis, respectivamente. Além de carinho, Léa foi a que mais apareceu naquela espécie de inventário metafísico. Na última menção, Pérsio admitia que estava errado quando dizia que tudo o que tinham vivido juntos havia ficado num passado qualquer, pois nada fica para trás, sempre seremos algo disso ou à partir daquilo.
O ônibus fez seu trajeto completo três vezes sem que Pérsio olhasse além da ponta de sua caneta de tinta verde que tanto de si havia dito. Até que decidiu descer em um ponto qualquer, a fim de metabolizar sozinho todo aquele mundo que saltava à sua frente para que fosse finalmente sentido. Os pássaros gritavam, as pessoas pediam-lhe um abraço, o policial um sorriso.
Sentada num banco de praça uma mãe-menina ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, quando se tem um seio na boca, com tanta vida a lhe oferecer. Sob o banco um gato dormia um sono invejável, do qual logo despertou e se espreguiçou da maneira mais prazerosa do mundo.
Na sombra de uma árvore um casal adolescente trocava carícias e provavelmente as juras de um amor tão intenso quanto efêmero, que Pérsio sorriu sem perceber, pois carregava um tanto de amor (ainda não compartilhado) consigo.
De repente a plenitude dava as caras a Pérsio, que pensou que momentos tão intensos quanto estes, que se bastam independentemente da finitude de um mundo, seriam equivalentes ao que sente um suicida ao ajustar a corda em torno de seu pescoço. Nada mais importa.
Sentado num banco do canto da praça, Pérsio retirou novamente do bolso a caderneta e voltou a escrever em verde.
Começou tentando descrever o que via ao seu redor, mas logo caiu na solidão que sempre pareceu nortear os seus dias.
Pérsio passou grande parte dos seus vinte e sete anos buscando bastar a si próprio, pois havia lido em algum lugar que o ser humano é um ser solitário, que inevitavelmente se descobre só, e que é preciso estar preparado para isso. Mas jamais conseguiu.
Dia após dia via-se cercado por seus amigos, todos escritos nas linhas verdes anteriores. Jamais conseguiu um desprendimento, e por isso se sentia frágil para viver a inevitável solidão que lhe engoliria em alguma vereda.
Linhas verdes se seguiram, mais por vaidade que por conteúdo, até que Pérsio concluiu que na verdade seus amigos, todos eles, um a um, prepararam-no para a vida intensa que precisava ser vivida, pois jamais seria obrigado a conviver com a solidão, que esta era a sentença dos que estavam condenados a viver além do que mereciam.
E agora, ali, naquela praça onde centenas de pessoas desconhecidas passavam com pressa, rumo a destinos incertos, Pérsio não sentia pressa alguma, enquanto se lançava à deriva no fluxo do tempo, onde já não estaria só, sem se importar em incorporar o diagnóstico médico impresso em tinta preta no papel branco que trazia amassado no bolso esquerdo de sua calça azul.
E olhando uma desconhecida, que parecia esperar alguém, sentada no banco em frente ao seu, ao lado da mãe-menina que ensinava ao seu filho-bebê a primeira plenitude de uma vida, apaixonou-se e escreveu em verde, enfeitando o verso do diagnóstico oncológico:
racionalmente olhando você:
não é maravilhoso que seus um-metro-e-sessenta-e-dois entrem pelos meus olhos-tão-pequenos e se agigantem dentro de mim, preenchendo cada espaço dos meus um-metro-e-oitenta-e-tantos?
mandei a racionalidade às favas quando cheguei em você.
Amei, amei amei.