Marcelo apanhou do namorado de uma ex-aluna sua, quando era instrutor de uma auto-escola picareta da zona leste da cidade. O episódio rendeu sua demissão, ainda que ele nem sequer tenha tocado nas belas e sempre expostas coxas da moça, a quem hoje se refere como “vadia mentirosa”, em curiosa coincidência com o trecho de uma letra de rap. O cara que bateu nele alegou “assédio” para justificar a agressão, perpetrada com a ajuda morna, desinteressada e casual de outro fortão qualquer. A auto-escola alegou “constrangimento de aluna” para afastá-lo do cargo. De qualquer forma, ele não guardava nenhum carinho em especial pela função a que se submetia para sobreviver, já que é só isso que se faz quando se está sob o manto de baixas perspectivas, daquelas que não fazem ninguém desafiar o horizonte e que são as mais recorrentes.
Ele agora tinha uma causa a que se dedicar. Mas, antes disso, alguns fatos.
Os três primeiros: ele não ouve rap, não gosta de fortões de qualquer natureza e não constrangeu ninguém.
O quarto, importante e especial o bastante para merecer parágrafo próprio: ele jurou vingança, ou, em outras palavras, jurou que seria guiado por aquela força que determina as ações de quem vive baseado em sentimentos tortos, injustos e quase sempre tão vivos quanto qualquer árvore velha ou luz de estrela. Não que ele tenha pensado através destes últimos termos. Longe dele.
Hoje, trabalha como motorista de ônibus, profissão correlata com a anterior. De certa forma, ninguém consegue ir embora de quem é e de onde veio.
Enquanto terminava alguns telefonemas com duas pessoas que o ajudariam a dar cabo de seu plano violento para cima daquele “playboy filha da puta que não sabe com quem mexeu” e que agora “tá tão fodido que nem consegue imaginar o tamanho do sofrimento que vai ter que aguentar”, assistia ao noticiário local das sete e poucos da noite na tevê aguardando Eduardo, com quem divide apartamento e contas.
Com o parceiro já em casa, começou uma conversa desnecessária que, no final, acabou saindo mais fácil que esconder o nervosismo do momento:
– Teu professor ligou.
– Ah, é? O do ioga?
– E você tem outro?
– …e aê? Quê que ele queria?
– Ele perguntou se você pode pagar ele amanhã.
– Tá.
– Ele não ligou no teu celular porque disse que tava sem crédito.
– Ah, beleza. Já falo com ele. Vou ver se ele tá online daqui a pouco.
– Mas fala mesmo, que ele tava meio puto.
– Tá. Já vejo isso. Só vou tomar banho.
– Tá.
– Cê tem 100 pila pra me emprestar pra amanhã cedo? Eu pego no banco na hora do almoço.
– Pior que num tenho, cara. Tô meio quebradão aí, que tô pra pagar umas parada.
– Ah, beleza. E o cara lá? Cê vai processar mesmo?
– Que cara?
– O cara lá…da mina lá…
– Ah…não sei. Vou ver aí.
– Mas veja mesmo, cara. Foda esse lance aê.
– Pior que é… mas foda-se esse cara e essa mina, e aquela merda de auto-escola. Eu tô é torcendo praquela merda pegar fogo, e praquela idiota morrer e praquele cara ser atropelado…
– Você que sabe. Se fosse comigo, cê tá ligado, né? Uma vez… – e saiu andando até o quarto para buscar roupas para depois do banho. Roupas de dormir, já que o termo pijama nunca seria o mais adequado para descrever como se veste este rapaz, tão peculiar e sempre dando a impressão de que só traja peças ganhadas, de forma que é normal que pareça desconfortável no próprio corpo.
– Se fosse comigo, porra nenhuma – disse Marcelo num sussurro, como se quisesse mesmo que o outro o ouvisse.
A casa ouviu o barulho do chuveiro elétrico por 16 minutos. Ao sair do banho, Eduardo perguntou ao colega, que ainda estava estático no sofá de dois lugares, esparramado:
– Você prefere a iluminação de uma avenida ou a iluminação de um corredor de shopping?
– Sei lá.
– Tava pensando nisso – e foi para a cozinha preparar alguma coisa para comer.
– Acho que de uma avenida, se tiver tudo certinho. Depende de que avenida e de que tipo de luz, também – ao sussurrar novamente, repetiu um comportamento estranho e até suspeito demais para aquela hora.
– E você prefere frio ou calor?
– Que que isso tem a ver com a outra pergunta?
– Sei lá…você gosta mais de blast beats ou de breakdowns? E gosta mais de batata ou de estudar?
Marcelo avisou que estava saindo, e que talvez não voltasse hoje. Se acontecesse qualquer coisa, que Eduardo resolvesse e não ligasse para falar.
A comunicação é difícil, e é uma pena que a telepatia não seja tão comumente praticada.
Descendo as escadas do terceiro andar, onde mora, até o térreo, olhou atentamente para os pés, para conferir se havia amarrado os cadarços dos tênis corretamente, já que precisaria correr daqui a pouco. Conferiu também se estava com o dinheiro que usaria para pagar os colegas de orgia sanguinária em mãos, e se a foto e o endereço da futura vítima estavam no bolso direito da calça, dentro da carteira que se encontrava então pouco acima das chaves de casa e do carro. As chaves o incomodavam um pouco por dentro da calça, devido à fricção causada pelo movimento. Mas este não era um problema inadministrável. Como não são também inadministráveis a maioria dos problemas na vida, que costumam ser carregados incomodamente, sabendo o vivente ou não das possibilidades de solucioná-los, ainda que nunca sem peso e quase nunca sem dor.
Tudo pronto.
Ao menos, tudo que fosse necessário para que a ideia se concretizasse perfeitamente, sem chances de dar errado por algum deslize ou falta de atenção ao longo do trajeto, físico e mental.
Funcionou.
Marco Antonio Santos
Sangue no zóio!!!