por Rafael
Sonhei que estava em uma biblioteca enorme com você. Era em Curitiba mesmo, acho. Lá estariam todos os livros que não lemos, mas que estivemos neles, de alguma maneira.
Lembro que em algum momento nos separamos, pois eu precisava encontrar o livro da minha vida. Algo que vinha buscando há tempos.
Você ficou, pois sabia onde estava o que procurava.
Eu desci, subi escadas e cheguei a um campo aberto. Veja só!, uma biblioteca com prateleiras sob o céu, que poderia chover e anoitecer sem perigo de comprometer todas aquelas infinitas páginas. Estranhei, mas logo compreendi que para desintegrar algumas páginas de nossos livros seriam necessários mais do que umidades e sopros sem endereços certos.
Segui pelos corredores, que eram desertos, mas sentia a companhia dos fantasmas que habitavam aquelas imponentes páginas ao meu redor.
Me maravilha essa nossa capacidade de escutar o silêncio.
Enquanto observava todos aqueles livros, sem diferenciar um do outro, me lembrava de capítulos pelos quais passamos. Vivíamos como estas páginas, tão bem escritas. Queria eu ter a capacidade de viver com tanta habilidade quanto aquelas linhas, tão retas, indestrutíveis diante da ação do quando e do onde.
Deixamos de viver nossos capítulos, pois ainda era cedo para fazer algo, e agora esperamos um quando que seja tarde demais.
Nosso único esforço é esperar.
Esqueça esse relógio. Nosso tempo só existe fora deste quando. Quase sempre.
Entre as prateleiras ao vento, passei a me sentir vulnerável e já começava a ir embora a partir de meus dedos.
Quando percebi, braços e pernas esparramavam-se pelo ar, junto às folhas secas de algumas árvores próximas. Como podem estas páginas empoeiradas (de outros restos) nas prateleiras serem imunes ao tempo?
Corri de volta até você, para dizer o que havia encontrado, ou para encontrar.
As prateleiras pareciam se mover, me colocando em um labirinto onde seria meu próprio Minotauro.
O vento uivava e minha roupa agitava feito bandeira ao meu redor.
Subi, desci escadas e te encontrei sentada ao fundo de uma enorme sala abarrotada de livros. Sobre uma pequena cadeira, folheava as páginas da sua própria vida. Só então pude perceber que não havia me encontrado.
Tentei voltar e percebi que o vento já havia me levado, um tanto para cada lado, à deriva em um mar invisível, onde sequer me afogaria.
Me afligem os silêncios que atormentam com a certeza de que jamais consegui conduzir a minha vida como as linhas daqueles tão-nossos-livros.
Morria tão lentamente, camada a camada, que sequer percebi. Talvez até tenha desejado acelerar o tempo que ainda estaria por vir. Corroí. Me entreguei ao vento.
Agora aqui, diante destas linhas, tão mais retas que meus dias, me sinto esgotado ao revisitar estas lembranças que me chegam em pedaços desconectados, que não me deixam estar em um só lugar.
É como tivesse vivido pequenas mortes cotidianas. Me nego a perceber o pouco a pouco como morri.
Ao lembrar do sonho, sinto reanimar a fina casca que bate e faz eco-no-oco-do-meu-peito. Os olhos reagem, mas seguro. Seguro porque só acredito em minhas lágrimas enquanto não as choro.