Vivo ou morto? 0 807

Rodrigo Daher

 

“O que eu estou fazendo no sofá!?” A casa já dorme. Cada coisa em seu lugar. Acordo com uma dor de cabeça inexplicável. “Mas não durmo no sofá desde a nossa última briga séria! Há 5 anos atrás!?” Lentamente me levo até a porta do quarto. Aberta. Melhor, semi-aberta. Um enorme coberta de inverno, dessas que se compram no Paraguai, cobre toda a extensão da pequena cama. Vejo os cabelos loiros dela caídos. “Não deveria ter sido assim.” Estou parado na porta. Respiro, respiro pesadamente. O gosto da minha última refeição: sopa. A dor. De cabeça, do corpo, da alma. Na lama. “Espere um pouco! Se sou eu aqui, de quem é aquele pé!?” Um choque percorre a espinha. Expande-se. “Não pode ser! Morri!” Morto? Como assim morto? Não tenho coragem de me aproximar de mim mesmo. Sem movimentos. Ela dorme como dormiu no primeiro dia de amor, quieta, uma estátua. Mas eu não. Sempre um tumulto. Nunca numa só posição. E agora, parado? “Não pode ser!” Caminho como ele, sobre as águas, sem sentir meus pés, o percurso de um drogado. “Mexa-se covarde!” Minhas mãos tocam o tecido grosseiro mas aconchegante.”Puxe!”

 

– Ei! O que você faz aqui!? Nós combinamos que você dormiria no sofá!

-Como assim combinamos!?

-Shhhh! Fale baixo, não quero que ela acorde. Você já causou muitos problemas na nossa vida.

-Causei problemas? E como assim na “nossa” vida? Ela é a minha mulher!

-Hahahahahahaha! Vejo que você está com aquela amnésia novamente…

-Amnésia? Do que está falando? Quem é você?

-Preste atenção, vou repetir nosso acordo mais uma vez: a vida normal é minha e a do sonhos é sua. Eu durmo na cama. Você no sofá. Simples assim.

-Você só pode estar de brincadeira, filho de uma puta!

-Eu já esperava isso de você, com aquela conversa fiada de que eu poderia ficar com o dia a dia e você correria atrás de explorar suas ideias… blahblahblah!

Minha cabeça dói. Quem é esse cara!? Minhas mãos já estão fechadas. “Vou resolver isso agora.”

 

-E nem pense em fazer qualquer besteira. Se ela acordar agora você já era.

-Já era!? Do que está falando? Seu miserável…

-Esqueceu como funciona o nosso mundo? Só enquanto ela dorme você pode existir e criar. E sou eu quem impede que ela perceba as suas loucuras. Idiota. Se qualquer coisa acontecer comigo… hahhahaha Você se fode junto!

 

Dói minha cabeça. Dói. “Eu a amo como sempre. Eu fujo como nunca.” Saio do quarto. Mas ainda estou lá. Volto pro sofá. Solitário. “Lugar de louco é aqui. E sozinho.”

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a mente enquanto objeto quebradiço 0 2423

I

 

a noite aqui fora tá um pouco opressiva, graças ao bafo úmido que levanta do asfalto depois dessas chuvas de verão. passa pouco das oito da noite e eu mando um zap pra Cíntia, ver se ela precisa de algo em casa. “Traz um pão de azeite de oliva pra mim”, ela pede num áudio. quase envio uma mensagem perguntando onde encontrar um negócio tão específico, mas assim que olho pra frente me deparo com um local metido a besta, o típico estabelecimento que venderia pão de azeite de oliva. nunca vi esse prédio. entro, o lugar é descolado, projetado pra ricos moderninhos. uma espécie de galpão abandonado, de pé direito alto e arquitetura estranha, com várias lojas e restaurantes que ficam nas paredes, pelas quais o cliente passeia usando rampas. roupas, massas, eletrônicos, brinquedos artesanais. tipo um shopping pra quem quer se sentir integrado à região mas sem correr riscos.

um conjunto formado por vozes masculinas e femininas, flautas e percussões está distribuida ao longo do térreo e toca uma música em tom menor, bem bonita, lindíssima. é emocionante. choro um pouquinho e sinto uma vontade inexplicável de comprar romãs. peço por romãs, não as encontro, mas de rolê pelo galpão sou abordado por uma senhora, sentada num café afetado. “Psiu. Você quer romãs? Eu sei onde tem”, ela fala, feito gato, e me estica um cartão pessoal com nome que nem leio. “Lá perto de casa as romãzeiras estão carregadíssimas”, mia. sorri.

 

II

 

quando noto, estou descendo de um carro. percurso curto, que rua é essa? a velha me convence a entrar na casa porque precisa avisar qualquer coisa pra filha antes de me mostrar onde acho romãs. ela tem um desenho excêntrico, me deixa confuso, como se um sorrisinho malicioso estivesse grudado pra sempre em um rosto antigo e marcado por muitas mudanças. o cabelo platinado, quase branco. ela começa a falar estranho comigo, “Nossa, você é muito lindinho”, pergunta meu nome, respondo “Paulo. Paulo Braga”. meu nome não é Paulo e meu sobrenome não é Braga e eu não entendo mais o que estou fazendo. a senhora me pede licença e sai do cômodo e nisso a filha entra. igual, mas o cabelo é preto e o rosto é jovem. começa a fazer perguntas inúteis, ela também fala miando. “De onde você é?”, questiona, respondo “Minas”, mas eu não sou de Minas. “Ai, que fofo! Que bom que você vai vir pra cá, passar sotaque pra minha mãe”.

vir pra cá? passar sotaque? do que essa moça tá falando? explico que na verdade sou gaúcho, de Pelotas, e nada muda na dinâmica da conversa. tento me distrair pensando em quando vou finalmente comer as romãs, mas o cômodo tem um ar estranho, um perfume me sufoca e confunde. enquanto a jovem mia bobagens e amenidades, tiro o celular do bolso e jogo no Google o nome da coroa, que copiei do cartão. nome diferente, nunca li nada assim. “Que línguas você fala?”, ela, “Inglês e espanhol”, eu, “Ótimo, mamãe fala muitas outras, já podem viajar bastante”. o clima não tá legal, eu não quero viajar com ninguém, eu fico tenso, o 4G não funciona direito. “Mamãe teve vários homens mas nenhum nunca deu certo. Acho que nenhum estava realmente pronto, sabe? E sempre acabam sumindo, hehe”.

 

III

 

fito a tela. a busca está completa. leio os resultados.

 

travo.

congelo.

 

IV

 

reúno forças e levanto e percebo a velha de volta ao quarto. sorrisinho, vestido e véu vermelho-sangue, quase flutua. penso em correr, mas um miado calmo soa como se viesse por toda parte, formando palavras que mais soam como portas que se fecham.

 

“Aonde é que você pensa que vai? Você fica. Você não vai a lugar nenhum”.

 

 

 

 

 

texto do Rômulo Candal

visual do Marco Antonio

Palavras sem letras 0 1116

mr Kawamura

Eu até entendo aquelas pessoas que leem diversos temas ao mesmo tempo e passam a limpo três, quatro livros em um mês. A esses leitores deixo aqui, antecipadamente, os meus aplausos. Imagino como essa habilidade deve ser útil e os deve deixar à frente de qualquer um. Eu não nasci com, nem desenvolvi tal sorte.

É claro que são fases também, dependendo da necessidade e da presença de espírito, dá até pra encarar umas leituras, digamos assim, mais dinâmicas. Enfim, o caso é que pelo terceiro ano consecutivo, na mesma época, nesses dias de fim de agosto e início de setembro, me vi encarcerado em um capítulo de livro. Pela terceira vez, só consegui atravessar o capítulo em questão após longas horas de leitura e releitura compulsiva. Obsessão? É possível que sim.

Deixando o drama de lado, talvez isso seja algo menos patológico e mais intuitivo. Apenas curiosidade. Uma busca mais intensa que perfura a epiderme da interpretação de texto e ganha volume na absorção do sentido. É quando você literalmente começa a entrar em um processo de enxergar palavras sem a necessidade de letras. Um animal desconhecedor dos signos, que apenas se orienta por sensações e sonhos. Como diz o trecho do poema de Miss Saeki:

You sit at the edge of the World
I am in a crater that’s no more
Words without letters

Esse poema se encontra justamente no trecho do capítulo ao qual permaneci preso por quase todo esse mês. É a vigésima terceira parte do romance ‘Kafka à Beira-mar’, do japonês Haruki Murakami. É nesse pedaço do livro, sem dúvida, que acontece o ponto de confrontação do herói. Porém, em um sentido mais poético e contemplativo. Não foi apenas gatilho para entronizar um certo desenrolar de acontecimentos em direção ao desfecho. Foi uma metáfora simples e muito reveladora. Uma chave que mudou a realidade. Fui Tamura, fui Nakata, fui Hoshino e, mais do que todos, fui o felino Kawamura. Grande livro de sonhos que me proporcionou um breve reencontro com aquela excitação das primeira leituras.

No início de setembro de 2016 aconteceu algo parecido. O livro era ‘O Mestre e Margarida’, de Bulgakov. Ucraniano-russo maldito! Bruxo do teatro. Rei das cenas impossíveis. Pai de Behemoth, o gato mais lokaum da literatura mundial. As pinturas desenhadas naquelas páginas até hoje habitam as profundezas dos meus sonhos. Por vezes, no ponto de ônibus ou pedalando minha bicicleta, com o vento batendo no rosto, fecho os olhos e vejo as paisagens e atos fantásticos que o velho Mikhail compôs e deixou registrados naqueles manuscritos que não arderam nas chamas. Coincidência ou não (pira influenciada pela baixa cultura de 2007 com aquele thriller com o Jim Carrey? Talvez), o capítulo deste livro que me aprisionou por mais de um mês foi também o de número vinte e três.

O grande baile do ‘mochila de criança’ – aquele que pesa nas costas dos inocentes – descrito por Bulgakov nesse capítulo me deixou tão obcecado que em uma noite, no fim daquele mês de setembro, me vi diante de uma cena muito parecida, que até hoje não tenho certeza se exatamente aconteceu. Era madrugada. Eu estava em frente a um estabelecimento comercial na Avenida Senador Souza Naves, quando de dentro de um táxi desceu um grupo de figuras extremamente semelhantes ao sombrio Woland e sua galerinha do mal. Não tive medo, mas um pouco daquele estresse me causou consequências permanentes. Sem contar que o encanto e a entrega de Margarida despertaram em mim uma paixão controversa.

Fechando (ou iniciando) o ciclo dos três anos de setembro emparedado, 2015 teve sua cota de obsessão. Acho até que, de todas, essa foi a fase mais onírica. Por esse motivo, acredito também que tenha sido a mais problemática das três compulsões.

O livro era ‘O Aleph’, do Borges. Foi meu primeiro contato com o sobrenatural. Fiquei exatos trinta e cinco dias desesperadamente trancado dentro do primeiro capítulo do exemplar que chegou até mim por intermédio de um empréstimo na Biblioteca Pública do Paraná. Renovei e atrasei pela segunda vez. Paguei multa apenas para mantê-lo mais alguns dias comigo e tentar compreender o que de fato aquele conto ‘O Imortal’ queria me dizer.

Naquele período, vivendo no Hauer e vindo ao Centro todos os dias de bicicleta, tive alucinações. Em uma dessas revelações, conversei com o centurião de Tebas, que tem a busca pela imortalidade desenhada por Jorge Luis de uma maneira (por vezes hermetista) veemente e cheia de significado. Sofri com o desapontamento de Cartaphilus. Porém, mais do que as questões filosóficas a respeito de vida e morte, sobre aventura e pesadelo, memória e admiração, o que Borges diz sobre o sentido e a importância das palavras foi a chave de libertação daquela cela:

“Quando se aproxima o fim”, escreveu Cartaphilus, “já não restam imagens da lembrança, só restam palavras”.

Palavras, palavras deslocadas e mutiladas. Palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.

Repito essas frases como um mantra todos os dias: só restam palavras, palavras deslocadas, palavras mutiladas. As visões desencadeadas pelo primeiro capítulo de ‘O Aleph’, transformei em contos como o ‘Gálea e Bronze’ e ‘Amedeo’. Dos enigmas de ‘O Mestre e Margarida’ escrevi ‘Factóides da Devastação’ e ‘Festival de Inverno’. Enquanto lia o capítulo vinte e três de ‘Kafka à Beira-mar’, escrevi ‘Trauma’. Fracassadas tentativas de entender os significados dos sonhos suscitados pelos três livros. Na semana passada, baixei em e-Book ‘A Interpretação dos Sonhos’ e ‘O Futuro de uma Ilusão’, pra ver se ajuda. Tenho no máximo algumas pistas esparsas, nada inteiramente decifrado. A vida nos confronta com alguns mistérios insondáveis, contudo, ainda não sinto emergência em desvendá-los. A jornada importa mais que o destino.

Texto – Jadson André

Imagem – Mr. Kawamura