Um homem preso a uma cadeira antiga, com um pano na boca, se debate um pouco para tentar soltar as mãos. Consegue apenas cair no chão úmido de madeira de um quarto ou sala sem janelas, onde permanece deitado involuntariamente até a manhã do outro dia. Consegue dormir um pouco, com intervalos que duram mais que o sono, no entanto. Ainda guarda esperanças de que alguém apareça para salvá-lo deste pesadelo. Traja apenas meias, não mais brancas. O cheiro é muito ruim, mas ele não sabe que isso se deve à grande quantidade de pedaços de corpos de outras pessoas na geladeira misturado com um tanto de algum produto químico de origem desconhecida e, portanto, suspeita. E nunca saberá.
Estamos numa ilha de horrores em meio a uma vizinhança tranquila.
Ninguém mora no apartamento abaixo deste há sete meses. Desde então, muito aconteceu. O prédio de três andares, parte de um pequeno conjunto habitacional, tem um aluguel barato e fica a poucos bairros de distância do centro da cidade, onde ninguém sabe o que se passa naquele espaço e, se soubesse, não se preocuparia o bastante para fazer alguma coisa. Com um custo mensal de condomínio que não ultrapassa os R$ 32, já que os corredores não contam sequer com uma pessoa para limpá-los, sobra dinheiro para o morador investir no que importa, ou seja, qualquer tipo de objeto que promova a violência e a degradação de outros seres humanos, que jamais são vistos como semelhantes por ele. Facas, fitas adesivas, brinquedos sexuais que não divertem ninguém etc.
Os convites para que os rapazes vão até lá costumam ser casuais e simples, manifestados em momentos apropriados dentro de longas conversas em bares de cidades vizinhas. Tais mensagens geralmente envolvem juras de amor depois de beijos apaixonados pelos cantos, ou em filas de banheiros, ou até promessas de que o outro vai vivenciar uma noite inesquecível. Poucos resistem a convites para noites inesquecíveis, já que é muito raro que os felizes acidentes delas aconteçam a qualquer um. Experiências dessa natureza não são assim tão dispensáveis.
O rapaz que está deitado e com medo do que está ou não por vir tomava conhaque e cerveja sozinho no balcão de uma lanchonete de beira de uma estrada federal, mas nunca foi caminhoneiro, e nem desembarcou para se alimentar durante uma longa viagem de ônibus. Se um poeta quisesse se manifestar sobre este quadro não precisaria, já que é bem sabido que a solidão é fera, a solidão devora, e por aí vai. Ele não tem ninguém para quem ligar ou mandar mensagens de texto através do telefone celular em eventualidades ruins. E também não tem ninguém para ligar para ele para conversar sobre amenidades ou temas importantes. Nem naquela hora, nem em nenhuma das outras, que são percebidas por ele como sendo tão longas e intensas quanto a eternidade.
Noite fria, corações quentes.
O fato é que ele parecia merecer atenção especial, e está agora sendo levantado de sua posição desconfortável na cadeira pelo morador do apartamento, depois do mais rápido relacionamento afetivo no qual se envolveu em toda a vida, que virá a ser também seu derradeiro.
A tristeza e a apreensão, uma das formas pelas quais o sentimento se manifesta, não acabam.
A última vítima, seis dias atrás, nem gritou, e seu algoz tem orgulho disso, deus que é naquele tempo e naquele espaço.
Marco Antonio Santos