33% de sucesso, até aqui 4 1004

por Rômulo Candal

Quando olho pra trás e vejo o filho que nunca tive, a árvore que nunca plantei e o livro que nunca escrevi, me pergunto se cumpri o que era esperado de mim. Minha mãe achava que eu ia ter muito dinheiro, por ser “muito inteligente”. Meu pai sempre acreditou que eu acabaria sendo famoso graças ao meu acordeonzinho mal tocado. E meu avô, do fundo do seu poço de preconceito, só queria que eu não fosse gay.

Curiosamente, o único dos três que teve o desejo atendido, ao menos até aqui, foi o vô.

Não tenho mais muitas pretensões, confesso. O que eu consigo esperar, pra um futuro próximo, é manter meu emprego e continuar me divertindo quando surgem as oportunidades. E, sinceramente, o que mais pode querer um homem? Eu, por exemplo, só gosto mesmo é de assistir filmes, cozinhar e beber com os amigos. Gosto de truco também. E, por sorte, não nasci pra gostar de futebol, porque parece que os ingressos estão cada dia mais caros. Pra esses meus pequenos prazeres eu tenho dinheiro mais que suficiente.

Nunca nem me interessei por viagens muito longas, acho tudo tão desconfortável. Você tem que dormir em camas-muito-duras ou camas-muito-moles, demora pra aprender a lidar com os chuveiros, não sabe quais as taxas do serviço de quarto. Isso se você tiver um quarto. Dormir de barraca, nem pensar. Porque tem areia, aperto, frio ou calor, etc. E também, quem é que gosta de viajar sozinho? É sempre aquela coisa: vá pra um ponto turístico, tire uma auto-foto, entre em depressão por não ter com quem dividir o momento. Pegue um metrô, pra dizer que conheceu o transporte local, troque de ponto turístico, repita a operação quantas vezes forem necessárias. Amigos, tenho poucos, todos com família pra cuidar. Namoradas, nenhuma. E, por deus do céu, jamais viajaria com a minha família novamente (tenho conseguido me manter longe desde os dezoito).

Até que eu aceitaria ganhar um pouco mais, pra poder dar uma ajuda financeira pros meus pais. Muito mais por me sentir em dívida por todos os anos de despesas comigo do que por de fato me importar com eles. Não que eu não me importe, também. Longe disso.

Os dois estão na pior desde que mamãe quebrou a perna num acidente de carro e não conseguiu mais trabalhar. Mas, por outro lado, eles também não são lá de muito luxo: papai sobrevive de cerveja, do pacote do pay-per-view que eu pago pra ele acompanhar o Corinthians e de música sertaneja. A mãe, basicamente, se alimenta de Jesus (o Cristo). A rotina deles tem sido basicamente essa nos últimos dez anos. Cerveja, TV, Zezé di Camargo & Luciano e Jesus Cristo.

Deus que me livre desse fim. Quem sabe qualquer hora eu ganho mais dinheiro com a minha inteligência, ou faço algum sucesso com meu acordeonzinho? E acho que gay eu não vou virar.

De nada, vô.
Foto: Nacho Vegas

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4 Comments

  1. E isto porque adora ler deste muito pequenininho quando aos 3 anos surpreendeu todo mundo lendo o Menino Maluquinho em alto e bom som. Parabéns.

  2. Seu texto é bom. Não sei se é você ou um personagem, mas o que senti foi repulsa a esse homem, e ele me fez refletir sobre a mediocridade que cada um carrega no seu dia a dia, na sua vida , por aquilo que fez, deixou de fazer e faz. Talvez devêssemos fazer mais pelos outros, e isso seria fazer por nós mesmos.

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 4774

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai