Entre as estrelas 0 866

por Rafael

Eram 18 horas de mais uma quinta-feira, daquelas que não se diferenciam em nada das outras quintas. Ventura estava na rua, saindo de seu emprego burocrático. No peito, um único sentimento: mais um dia vencido. Mal sabia ele que, na verdade, era um a menos.

Saiu na rua com as mesmas mãos nos bolsos e cabeça baixa de sempre. Não precisava olhar para frente, pois o trajeto até sua casa contaria com o mesmo roteiro de sempre: passaria no mesmo mercado de sempre e compraria a mesma cerveja de sempre, que, como sempre, não beberia até o final e jogaria o resto no mesmo terreno baldio de sempre. Caminha por estas oito quadras todos os dias.

Perdera o prazer de realizar o seu trabalho há cerca de quatro anos; uma semana depois que começou a lidar com as planilhas. Era um trabalho como outro qualquer, daqueles que fazem parar o relógio.

Eu poderia dizer que o tédio reinava, mas não, era uma quinta-feira como outra qualquer: Ventura passou no mesmo mercado de sempre e comprou a mesma cerveja de sempre. Mas, desta vez, talvez por tédio, talvez por distração, tomou tudo. Virou a lata e entornou a cerveja boca a dentro. Sem querer olhou o céu e lá estavam as estrelas. Milhares delas.

As estrelas sempre estiveram ali, sempre observaram o seu tédio, silenciosamente. Ventura parou, chegou a babar um pouco da cerveja já meio quente mas não se importou, até sorriu. Ficou parado, olhando para o céu que estava ali para todos, mas era percebido só por ele-só.

Ventura decidiu continuar seu caminho, pois a vida continuava, mas não pôde tirar os olhos daquelas estrelas, que já não estavam tão distantes quanto antes. Estava entre elas.

Dobrou por esquinas que jamais havia passado e, ao retornar seus olhos para o chão, não reconheceu nada ao seu redor. O espanto e o medo que deveriam surgir, desta vez, deram lugar à curiosidade. Ventura se viu instigado e feliz em meio ao novo.

Era a rua paralela à da sua casa. Um universo que sempre existiu, mas Ventura não possuía olhos para nada que não fizesse parte de sua rotina dura e cinza. Deixara de re-conhecer as cores-novas-de-novos-universos desde que Mariana deixou de conduzi-lo pelas mãos, transmitindo uma segurança capaz de fazê-lo explorar o desconhecido de olhos fechados.

Pela primeira vez, desde a partida de Mariana, Ventura sentia o prazer de conhecer, de descobrir o novo, ou até mesmo de inventá-lo. Voltou a sorrir sozinho, até cantarolava músicas que jamais teria coragem de cantar fora de sua casa cinza. Estava sozinho, mas com o mundo, com o novo, com as estrelas. Só ele sabia e isso bastava.

Nenhum detalhe passava despercebido. Nas casas, pais iam chegando, uns abraçando seus filhos, alguns já com uma cerveja em mãos, relaxando o dia burocrático que certamente haviam tido. Ventura contemplava tudo. Era uma estrela.

Percebia que, para o amor, não seriam necessárias duas pessoas. Não sempre.

“Vocês assistem a isso todos os dias?”, perguntava às estrelas, que brilhavam como resposta, “Em dias nublados a vida de vocês deve ser um tédio daqueles!” e elas continuavam lá, brilhando com aparente indiferença.

Ventura teve certeza de que jamais retornaria das estrelas e queria saber de Mariana, para lhe dizer que a entendia. “Se ela ao menos soubesse que eu enxerguei”.

E assim Ventura foi, flutuando sem rumo por ruas desconhecidas, até que se deparou com a esquina da própria casa.

Foi como cair de outra galáxia ali, na mesma rua. A queda não doeu, mas  lhe custou as cores da percepção. Ali ele não podia olhar para as estrelas.

Colocou as mesmas mãos nos bolsos, baixou a cabeça e caminhou rumo à sua casa, como sempre, pois amanhã, às oito da manhã, começaria mais uma sexta-feira, provavelmente igual às demais.

As estrelas continuaremos aqui, todos os dias, mais próximas do que Ventura possa imaginar. O novo estará sempre o acompanhando, pois está dentro de si, mas seu coração está arisco desde que Mariana deixou de lhe guiar. Um coração quando está à caça de seu velho amor é cego para as novas coisas, que envelhecem sem que sequer cheguemos a tocá-las.

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Dai-me Amor 0 3210

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”

 

 

O estranho caso da sommelière de lágrimas 1 3519

Por Mariana Porto

 

No dia em que nosso amor morreria, você me trouxe um vinho de qualidade questionável e disse “isso é pra você aprender que a vida pode te surpreender”. Na hora, juro que fiquei inicialmente sem entender, já que o fato do vinho ser meio agressivo eu já esperava. No entanto, confesso que isso jamais tinha sido um problema em nossa relação.

Sem medo de parecer clichê, posso dizer que seus beijos sempre harmonizaram tão bem, e que sua boca me preenchia com tanta delicadeza, que mesmo se eu tivesse acabado de tomar uma dose da pior cachaça da praça, ainda assim, me desceria com o frescor mais equilibrado que já provei.

Mas, naquele dia, eu senti tudo como um grande coice, de uma brutalidade que foi realmente inesperada. Você segurou meu rosto, se despediu, e me deu um beijo seco. Sua mão estava suada, mas entendo que também não deve ter sido fácil pra você — tanto me dizer adeus, quanto tomar aquele vinho ruim.

Você saiu e bateu a porta, me deixou e deixou aquela garrafa que, no fim, fiz questão de guardar como souvenir, só pra lembrar do azedume que nosso amor se tornou. Serviu também para não esquecer de que você me largou ali, sozinha, e tomando aquele vinho vagabundo diluído em uma tristeza profunda. “Sommelière de lágrimas”, é um título eu ostento até hoje por sua causa.

Mas, sendo bem sincera, admito que eu guardo essa garrafa vergonhosa principalmente como uma artimanha pra tentar me impedir de sentir saudades. Essa saudade de quando eu poderia me embriagar inteira de você, e ainda me manter de pé. Feliz. Com a boca preenchida, com o frescor do amor novo. Porque eu sinto sim saudades. Todos os dias. Desde o dia que nosso amor pareceu que morreu.

“Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter
And so sweet oh
I could drink a case of you darling and I would
Still be on my feet
Oh I would still be on my feet”