por Rafael
Eram 18 horas de mais uma quinta-feira, daquelas que não se diferenciam em nada das outras quintas. Ventura estava na rua, saindo de seu emprego burocrático. No peito, um único sentimento: mais um dia vencido. Mal sabia ele que, na verdade, era um a menos.
Saiu na rua com as mesmas mãos nos bolsos e cabeça baixa de sempre. Não precisava olhar para frente, pois o trajeto até sua casa contaria com o mesmo roteiro de sempre: passaria no mesmo mercado de sempre e compraria a mesma cerveja de sempre, que, como sempre, não beberia até o final e jogaria o resto no mesmo terreno baldio de sempre. Caminha por estas oito quadras todos os dias.
Perdera o prazer de realizar o seu trabalho há cerca de quatro anos; uma semana depois que começou a lidar com as planilhas. Era um trabalho como outro qualquer, daqueles que fazem parar o relógio.
Eu poderia dizer que o tédio reinava, mas não, era uma quinta-feira como outra qualquer: Ventura passou no mesmo mercado de sempre e comprou a mesma cerveja de sempre. Mas, desta vez, talvez por tédio, talvez por distração, tomou tudo. Virou a lata e entornou a cerveja boca a dentro. Sem querer olhou o céu e lá estavam as estrelas. Milhares delas.
As estrelas sempre estiveram ali, sempre observaram o seu tédio, silenciosamente. Ventura parou, chegou a babar um pouco da cerveja já meio quente mas não se importou, até sorriu. Ficou parado, olhando para o céu que estava ali para todos, mas era percebido só por ele-só.
Ventura decidiu continuar seu caminho, pois a vida continuava, mas não pôde tirar os olhos daquelas estrelas, que já não estavam tão distantes quanto antes. Estava entre elas.
Dobrou por esquinas que jamais havia passado e, ao retornar seus olhos para o chão, não reconheceu nada ao seu redor. O espanto e o medo que deveriam surgir, desta vez, deram lugar à curiosidade. Ventura se viu instigado e feliz em meio ao novo.
Era a rua paralela à da sua casa. Um universo que sempre existiu, mas Ventura não possuía olhos para nada que não fizesse parte de sua rotina dura e cinza. Deixara de re-conhecer as cores-novas-de-novos-universos desde que Mariana deixou de conduzi-lo pelas mãos, transmitindo uma segurança capaz de fazê-lo explorar o desconhecido de olhos fechados.
Pela primeira vez, desde a partida de Mariana, Ventura sentia o prazer de conhecer, de descobrir o novo, ou até mesmo de inventá-lo. Voltou a sorrir sozinho, até cantarolava músicas que jamais teria coragem de cantar fora de sua casa cinza. Estava sozinho, mas com o mundo, com o novo, com as estrelas. Só ele sabia e isso bastava.
Nenhum detalhe passava despercebido. Nas casas, pais iam chegando, uns abraçando seus filhos, alguns já com uma cerveja em mãos, relaxando o dia burocrático que certamente haviam tido. Ventura contemplava tudo. Era uma estrela.
Percebia que, para o amor, não seriam necessárias duas pessoas. Não sempre.
“Vocês assistem a isso todos os dias?”, perguntava às estrelas, que brilhavam como resposta, “Em dias nublados a vida de vocês deve ser um tédio daqueles!” e elas continuavam lá, brilhando com aparente indiferença.
Ventura teve certeza de que jamais retornaria das estrelas e queria saber de Mariana, para lhe dizer que a entendia. “Se ela ao menos soubesse que eu enxerguei”.
E assim Ventura foi, flutuando sem rumo por ruas desconhecidas, até que se deparou com a esquina da própria casa.
Foi como cair de outra galáxia ali, na mesma rua. A queda não doeu, mas lhe custou as cores da percepção. Ali ele não podia olhar para as estrelas.
Colocou as mesmas mãos nos bolsos, baixou a cabeça e caminhou rumo à sua casa, como sempre, pois amanhã, às oito da manhã, começaria mais uma sexta-feira, provavelmente igual às demais.
As estrelas continuaremos aqui, todos os dias, mais próximas do que Ventura possa imaginar. O novo estará sempre o acompanhando, pois está dentro de si, mas seu coração está arisco desde que Mariana deixou de lhe guiar. Um coração quando está à caça de seu velho amor é cego para as novas coisas, que envelhecem sem que sequer cheguemos a tocá-las.