Ocean Bed 0 704

por Teresa

Com aquele olhar de quem tentava encontrar alguma verdade que nem eu mesma sabia dentro de mim, ela disse:

– Essa tua inadequação é incurável.

Acostumada com colocações inesperadas que ela sempre fazia, agi como de costume. Apoiei a cabeça na mão direita para suportar o peso do que viria, inclinei o corpo um pouco para frente, a fim de garantir algum conforto, e incentivei a digressão:

– Como assim?

Mesmo que eu não dissesse nada, mantivesse o mais absoluto silêncio, ela continuaria a falar. Quando decidia “dizer umas verdades”, nada a impedia. Então, continuou:

– Você pode buscar onde quiser. Tentar de tudo. A inadequação é tua natureza. Não há emprego que te garanta o estilo de vida que Eles levam. Modelo de família que você possa constituir para parecer com a família que Eles têm. Livros, revistas, blogs ou filmes que você possa ler ou assistir para entender o que, e como Eles pensam. Camiseta de banda que te torne mais uma entre Eles. Deus que você possa inventar para adorar e ter a fé da qual Eles compartilham. Copo, garrafa, engradado de cerveja que te possibilite dialogar sobre o que Eles dialogam.

Comportamentos, gestos ou piadas que você possa aprender para com Eles interagir. Não há, sequer, antidepressivo que te acalme os ânimos e te faça se sentir menos ansiosa para ser, finalmente, um Deles. Essa tua inadequação, como eu disse, é incurável.

– E o que você sugere, então?

– Aceite o teu vazio de potencialidades para ser um dEles. E, então vazia, preencha-se como julgar melhor. Durante o processo, tome cuidado com o tédio que vai te assombrar. Resista. O tédio pode te levar a questionar razões, buscar estímulos. Nesses momentos, sempre pense que o tédio dEles, é igual a qualquer outro. Assim como você, Eles também buscam um sentido. Também sofrem com a monotonia do que são.

Cansada, apago a luz do espelho. Levanto e, cansada, me afasto. Um pouco diferente de antes. Talvez um pouco mais velha que no instante anterior. O tempo tem dessas pressas. Já na cama, cabeça no travesseiro, ela volta a insistir:

– Ouviu o que eu te disse? É incurável. Não adianta.

Fecho os olhos. Amanhã, quem sabe, ela acorde mais otimista.

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Distante das Linhas de Nazca 0 1276

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1212

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski