por Rafael
No dia em que a neve caiu em Curitiba, todos se perderam a olhar para o céu, inclusive as distâncias. Não havia estranhos, não havia frio. Todos compartilhavam o breve e hipnotizante momento.
Eram umas sete da manhã, não lembro ao certo, mas eu dormia. Aos poucos despertava do profundo sono num daqueles resgates em que a realidade parece nos puxar de nosso inconsciente. Eram gritos e vivas vindos de todos os lados, cada vez mais próximos. Aos poucos despertei.
Era a neve.
Pelo canto da cortina ao lado da cama, aqui do terceiro andar pude ver os levíssimos flocos, mais leves que o ar, pairando como houvessem escapado de alguma máquina de fazer algodões-doces.
Famílias inteiras corriam, desciam, subiam escadas, tiravam fotos. Crianças-com-caras-de-sono aprendiam que era extremamente empolgante ver a neve apesar do vento gelado.
Ninguém se importava com o frio. Todas as janelas dos apartamentos aqui em frente estavam abertas. De nome, não saberia apontar nenhum vizinho, mas todos extremamente sorridentes com as mãos para fora na esperança de pegar um floco que fosse.
A vizinha da janela da frente pela primeira vez me deu bom dia. Provavelmente ela já tenha me visto antes, devido à minha despreocupação em fechar a cortina do quarto. Deve saber das minhas manias e companhias. Confesso que já tentei vigiar a intimidade dela, mas sua cortina está sempre fechada. A não ser que neve.
No apartamento de cima, uma senhora de cabeça branca se apoia no parapeito, com os vidros fechados, com um olhar perdido, impossível saber aonde chega. A eternidade daquele olhar ainda me intriga. Um contentamento contido. Estéril e apático, como quem nasceu para ser-só.
Impossível descrevê-lo sem elementos daquela história por detrás da janela.
Essa nossa necessidade de compreender o outro me parece com nossos esforços em definir o desconhecido. Assim como chamamos de mar o que no fundo é apenas a sua superfície, apenas o que vemos. Tão passível da ação dos ventos.
Nunca mais vi alguém naquela janela. As cortinas sempre fechadas, dia e noite, me remetem sempre àquela manhã. Há dias em que fecho os olhos e sinto aquela sensação novamente. A vontade de compreender o que a velhinha via. Sei que minha projeção é vã. Sei que a realidade às vezes é apenas algo do nosso desejo.
Nessa madrugada fria de hoje, não tão gelada quanto aquela manhã, olho as mesmas janelas todas-apagadas-de-cortinas-fechadas e sinto uma saudade.
Saudade da cumplicidade que nunca mais tive por aqui. Mudo o foco do meu olhar e me enxergo no reflexo do vidro. Atrás de mim, um quarto como nunca antes bagunçado, que me engole mais e mais.
Sinto meu corpo preenchido por uma melancolia de tempos que não saberia precisar. Um preenchimento que nada-diz.
“A melancolia é um sorriso triste. Ainda assim, um sorriso”. Já não lembro onde foi parar o pedaço de papel engordurado em que escrevi, mas é algo que me conforta ainda hoje. Um conforto que me permite ignorar o mundo de dores que nos espreita além das nossas janelas. Assim como ignoro o fato de que adoramos um céu com estrelas de outras eras.
A tal da neve em Curitiba durou poucos minutos. Alguns sabedores vieram com seus saberes a dizer que aquilo não era neve, mas chuva congelada. Não sei.
Logo a neve e aquilo tudo passaram. Pouco a pouco todos baixaram seus olhares e voltaram a seus cotidianos cinzas engrenados até hoje, com pequenos lapsos de cores, quase sempre invisíveis para nossos olhos tão pequenos e apressados.