
Fernando não é um profissional. Não tem uma carreira ou colegas com quem reclamar do expediente que se arrasta pelo dia. Tem, sim, um emprego que sustenta mais aos seus patrões do que sua própria família, mas são tempos difíceis para todo mundo.
Como vem fazendo por estes 24 anos, pontualmente chega ao galpão às 7:10 e atravessa o portão estreito até chegar ao local de trabalho. Já na ante-sala, tira cuidadosamente o casaco de pele que herdara do pai e pendura-o sobre a cadeira com o mesmo cuidado desmedido que as mães devolvem suas crias ao ninho. Olha sobre a mesa à procura de recados enquanto esfrega uma mão na outra tentando aquecê-las. Não há nada; sem nomes ou orientações especiais. Serve um pouco de café da garrafa térmica que Lucy enviara, mas ele está mais fraco do que deveria, como acontece todas as segundas-feiras, quando sua esposa, ainda embriagada pelo amor intensivo que recebera durante todo o final de semana, coloca meia colher de pó a menos na garrafa. Mais uma daquelas atitudes bobinhas que tomamos inconscientemente, desejando resultados que nunca acontecerão. Lucy deseja em seu íntimo, sem saber, que Fernando volte para casa logo nos primeiros minutos da manhã, em busca de um café mais forte e encorpado para aguentar todo o stress do dia, e no minuto em que entrasse pela porta encontraria a mulher ainda cheia de amor, a lhe dar mais do que buscava, e ao sair, aí sim estaria preparado para enfrentar aquele dia com um sorriso no rosto. Mas isso nunca acontecera, e embora o ato continue semana a semana, o único efeito é a sonolência matinal de Fernando, que toma a primeira xícara, abre o jornal para olhar as fotos bonitas e exclama para si mesmo “Segunda-feira. Sensação física de quinta”.
Às 7:30 se prepara para começar as atividades do dia. Vai caminhando em direção à porta enquanto estrala os dedos da mão, e em seguida o pescoço. “Humm, este foi dos bons”. Antes de entrar, para em frente ao toca-discos que já está preparado com o Álbum Branco, lado A. Alinha a agulha para a primeira faixa, e sente o arrepio correr pelo seu corpo com o ruído do vinil à espera das primeiras notas. Veste o seu avental branco já marcado com o sangue e suor de seu trabalho, e continua a expectativa para a música, que logo começa. “Isis show times”, pensa tentando citar um filme que assistira há algum tempo com sua esposa. A verdade é que não sabia bem o que significava, mas a frase parecia ter sido pensada para este momento, e fazia com que Fernando se sentisse parte de uma sociedade que só existia em seu imaginário.
Por se tratar de um porão sem janelas, sua sala de trabalho é bastante escura e sem conforto. De um lado, uma mesa com suas ferramentas. Do outro, material de limpeza. Ao centro, a cadeira com seu próximo cliente, já amarrado e com silvertape na boca, que é utilizado também como etiqueta para identificar o nome do sujeito – sempre homem, afinal Fernando tem seus princípios e deixou claro desde o início que não bateria em mulheres. Não conseguiria, argumentou, e esta foi a única condição que impôs. Foi aceito, afinal torturadores não eram fáceis de encontrar antes da internet.
A etiqueta identifica o cliente como James, mas Fernando reconhece aquele rosto. Acabara de vê-lo estampado no jornal sob o nome de Luiz, um deputado que lutava há anos pela educação pública e a valorização dos professores. Parecia ser um bom homem sob uma nobre causa, mas se ali estava, era porque havia feito algo de errado, segundo a conclusão lógica de Fernando. Embora não conhecesse seu empregador, tinha a plena convicção de que aquele era um trabalho honesto e necessário. Estaria ajudando a combater ladrões, corruptos, sindicalistas vendidos, cozinheiros que não lavavam as mãos, guardas de trânsito, enfermeiras insensíveis, e todo tipo de pessoa que precisasse de uma ajuda pra melhorar as próprias atitudes. Foi até o homem, tirou a fita com força e lhe deu dois tapas na face, uma lembrança de sua infância que trazia como ritual de trabalho. Quando criança, seu pai vinha pelo corredor em direção ao seu quarto com a lanterna fraca e o chamava para acordar. Como invariavelmente continuava com os olhos fechados fingindo ainda dormir, seu pai, um homem justo mas de poucos modos, lhe dava dois tapas na cabeça. “Pra acordar pra vida”, dizia. O terceiro vinha logo após se vestir. “Pra aprender a não começar o dia mentindo”.
Após os tapas de aquecimento, começam os socos que continuariam por várias horas. A mesa ao lado está cheia de facas e ferramentas de corte – todas muito enferrujadas –, mas Fernando usara-as em um único caso, com um cliente que insultou a memória de seu pai. Fora isso, se autointitulava um purista, e por isso usava apenas os próprios punhos. Com o tempo foi aprimorando a própria técnica, e agora dava nome a alguns dos seus golpes, que muitas vezes eram anunciados em voz alta antes de serem proferidos: “Fúria dos Marginalizados!”, e lá vinham 3 socos de direita e 3 de esquerda; “Injeção Letal”, e mais alguns murros em locais estratégicos. Uma singela tentativa de não cair na rotina do emprego, algo que, contraditoriamente, desejava com todas as suas forças.
Como era de se esperar, Lucy não suspeitava da natureza real de sua profissão. Quando, ainda no namoro, lhe perguntou o que fazia, Fernando respondeu de supetão que era funcionário público: um trabalho bastante entediante, mas que ajudava a sociedade. Foi o bastante para Lucy, e principalmente para seus pais, aceitarem o casamento que logo veio. Mas compelido pela facilidade com que sua mulher acreditara naquela mentira quase inocente, passou a desejar o cargo público como seu objetivo único e máximo. Sem êxito até o momento.
Fernando descobriu que a pior surra que poderia dar em alguém, mesmo que merecida, não seria tão dolorosa quanto se Lucy descobrisse a verdade, ainda que lhe contasse quantos bandidos tirou da rua, e realmente acreditou nisso até o exato momento em que viu Luiz sentado à sua frente. Um homem público acima de qualquer suspeita, era pouco provável que de fato merecesse estar ali, e estes pensamentos foram tomando forma em seu dia ao ponto que sentia que a cada soco que lançava, era voltado instantaneamente em sua face. Sem suas certezas, deixava de ser um agente transformador do mundo, um herói ao avesso, e era renegado à mera posição de torturador: uma profissão sem carteira registrada. Não se pode conviver com este tipo de dúvida.
– Como foi o trabalho, querido?, pergunta Lucy ao ver o marido chegar em casa.
– Ahhh – suspira cansado. Uma tortura.
André Petrini.
Foto: Jeff Maurone / cc