Todos Querem ser Funcionários Públicos 0 829

Fernando não é um profissional. Não tem uma carreira ou colegas com quem reclamar do expediente que se arrasta pelo dia. Tem, sim, um emprego que sustenta mais aos seus patrões do que sua própria família, mas são tempos difíceis para todo mundo.

Como vem fazendo por estes 24 anos, pontualmente chega ao galpão às 7:10 e atravessa o portão estreito até chegar ao local de trabalho. Já na ante-sala, tira cuidadosamente o casaco de pele que herdara do pai e pendura-o sobre a cadeira com o mesmo cuidado desmedido que as mães devolvem suas crias ao ninho. Olha sobre a mesa à procura de recados enquanto esfrega uma mão na outra tentando aquecê-las. Não há nada; sem nomes ou orientações especiais. Serve um pouco de café da garrafa térmica que Lucy enviara, mas ele está mais fraco do que deveria, como acontece todas as segundas-feiras, quando sua esposa, ainda embriagada pelo amor intensivo que recebera durante todo o final de semana, coloca meia colher de pó a menos na garrafa. Mais uma daquelas atitudes bobinhas que tomamos inconscientemente, desejando resultados que nunca acontecerão. Lucy deseja em seu íntimo, sem saber, que Fernando volte para casa logo nos primeiros minutos da manhã, em busca de um café mais forte e encorpado para aguentar todo o stress do dia, e no minuto em que entrasse pela porta encontraria a mulher ainda cheia de amor, a lhe dar mais do que buscava, e ao sair, aí sim estaria preparado para enfrentar aquele dia com um sorriso no rosto. Mas isso nunca acontecera, e embora o ato continue semana a semana, o único efeito é a sonolência matinal de Fernando, que toma a primeira xícara, abre o jornal para olhar as fotos bonitas e exclama para si mesmo “Segunda-feira. Sensação física de quinta”.

Às 7:30 se prepara para começar as atividades do dia. Vai caminhando em direção à porta enquanto estrala os dedos da mão, e em seguida o pescoço. “Humm, este foi dos bons”. Antes de entrar, para em frente ao toca-discos que já está preparado com o Álbum Branco, lado A. Alinha a agulha para a primeira faixa, e sente o arrepio correr pelo seu corpo com o ruído do vinil à espera das primeiras notas. Veste o seu avental branco já marcado com o sangue e suor de seu trabalho, e continua a expectativa para a música, que logo começa. “Isis show times”, pensa tentando citar um filme que assistira há algum tempo com sua esposa. A verdade é que não sabia bem o que significava, mas a frase parecia ter sido pensada para este momento, e fazia com que Fernando se sentisse parte de uma sociedade que só existia em seu imaginário.

Por se tratar de um porão sem janelas, sua sala de trabalho é bastante escura e sem conforto. De um lado, uma mesa com suas ferramentas. Do outro, material de limpeza. Ao centro, a cadeira com seu próximo cliente, já amarrado e com silvertape na boca, que é utilizado também como etiqueta para identificar o nome do sujeito – sempre homem, afinal Fernando tem seus princípios e deixou claro desde o início que não bateria em mulheres. Não conseguiria, argumentou, e esta foi a única condição que impôs. Foi aceito, afinal torturadores não eram fáceis de encontrar antes da internet.

A etiqueta identifica o cliente como James, mas Fernando reconhece aquele rosto. Acabara de vê-lo estampado no jornal sob o nome de Luiz, um deputado que lutava há anos pela educação pública e a valorização dos professores. Parecia ser um bom homem sob uma nobre causa, mas se ali estava, era porque havia feito algo de errado, segundo a conclusão lógica de Fernando. Embora não conhecesse seu empregador, tinha a plena convicção de que aquele era um trabalho honesto e necessário. Estaria ajudando a combater ladrões, corruptos, sindicalistas vendidos, cozinheiros que não lavavam as mãos,  guardas de trânsito, enfermeiras insensíveis, e todo tipo de pessoa que precisasse de uma ajuda pra melhorar as próprias atitudes. Foi até o homem, tirou a fita com força e lhe deu dois tapas na face, uma lembrança de sua infância que trazia como ritual de trabalho. Quando criança, seu pai vinha pelo corredor em direção ao seu quarto com a lanterna fraca e o chamava para acordar. Como invariavelmente continuava com os olhos fechados fingindo ainda dormir, seu pai, um homem justo mas de poucos modos, lhe dava dois tapas na cabeça. “Pra acordar pra vida”, dizia. O terceiro vinha logo após se vestir. “Pra aprender a não começar o dia mentindo”.

Após os tapas de aquecimento, começam os socos que continuariam por várias horas. A mesa ao lado está cheia de facas e ferramentas de corte – todas muito enferrujadas –, mas Fernando usara-as em um único caso, com um cliente que insultou a memória de seu pai. Fora isso, se autointitulava um purista, e por isso usava apenas os próprios punhos. Com o tempo foi aprimorando a própria técnica, e agora dava nome a alguns dos seus golpes, que muitas vezes eram anunciados em voz alta antes de serem proferidos: “Fúria dos Marginalizados!”, e lá vinham 3 socos de direita e 3 de esquerda; “Injeção Letal”, e mais alguns murros em locais estratégicos. Uma singela tentativa de não cair na rotina do emprego, algo que, contraditoriamente, desejava com todas as suas forças.

Como era de se esperar, Lucy não suspeitava da natureza real de sua profissão. Quando, ainda no namoro, lhe perguntou o que fazia, Fernando respondeu de supetão que era funcionário público: um trabalho bastante entediante, mas que ajudava a sociedade. Foi o bastante para Lucy, e principalmente para seus pais, aceitarem o casamento que logo veio. Mas compelido pela facilidade com que sua mulher acreditara naquela mentira quase inocente, passou a desejar o cargo público como seu objetivo único e máximo. Sem êxito até o momento.

Fernando descobriu que a pior surra que poderia dar em alguém, mesmo que merecida, não seria tão dolorosa quanto se Lucy descobrisse a verdade, ainda que lhe contasse quantos bandidos tirou da rua, e realmente acreditou nisso até o exato momento em que viu Luiz sentado à sua frente. Um homem público acima de qualquer suspeita, era pouco provável que de fato merecesse estar ali, e estes pensamentos foram tomando forma em seu dia ao ponto que sentia que a cada soco que lançava, era voltado instantaneamente em sua face. Sem suas certezas, deixava de ser um agente transformador do mundo, um herói ao avesso, e era renegado à mera posição de torturador: uma profissão sem carteira registrada. Não se pode conviver com este tipo de dúvida.

– Como foi o trabalho, querido?, pergunta Lucy ao ver o marido chegar em casa.

– Ahhh – suspira cansado. Uma tortura.

André Petrini.
Foto: Jeff Maurone / cc

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5190

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.