por Rafael
Uma vez mais me encerro em meu quarto para escrever uma das já não sei quantas cartas-que-jamais-lhe-entregarei, pois qualquer coisa é melhor do que ficar calada.
Tenho todas elas guardadas na primeira gaveta ao lado da minha cama. A parte mais organizada do meu quarto. Talvez da minha vida.
Ainda hoje revirei sua biblioteca e os papéis que você tanto escrevia. Tento me encontrar nas suas linhas (tão tortas). Sei, mas tento me esquecer, que muitas delas não foram escritas pensando em mim, mas ignoro, pois só eu chego a elas. São minhas.
Em que momento nos perdemos destas linhas? Onde a vida começou a desfiar?
Vivemos à espera de um marco, um triunfo, uma derrocada que sinalize um fim que insistimos em esconder. Blindamos nosso presente ignorando que ele se esvai a cada momento e é substituído por outro agora que, ai, passou.
Quanto de mim já se foi? Quanto ainda me resta? Não nos preocupamos com isso porque temos o conforto de que no final tudo dará certo, sem levar em conta que, no fundo, o que existe é o caminho até lá. Por onde tenho andado?
São sempre tantos por quês, que nos damos ao luxo de achar normal o fato de que algumas perguntas não possuem mesmo respostas.
Hoje passei em frente ao seu trabalho e pensei em entrar. Ir direto à sua sala, sem me identificar a seguranças, secretárias, a ninguém. Pular a catraca e correr até a última porta do corredor.
Abriria a porta sem me importar com mais nada. Contaria o quanto eu sofri, cresci, me iludi, caí, reconstruí e só então pude perceber que você jamais sairia de dentro de mim.
Assim como diariamente me espremo até caber nas suas entrelinhas. Me vejo (e odeio isso) regar minhas letras com lembranças de você.
Escrevi isso e sorri. É quase um ódio o que sinto ao perceber o quanto meu corpo reage sem pensar, como fosse um motim. Há coisas que guardo comigo e finjo esquecer, escondendo de mim mesma.
Há dias em que me sinto fraca e sem razão para existir, como as flores que não cheiram. Como pode tudo estar tão fora do nosso controle? Já não me preocupo com os motivos pelos quais você se foi. A pergunta agora é “Quando você começou a ir?”
Hoje, entre seus papéis, uma folha em branco, com uma única frase no meio, me dizia: “é preciso burilar-se”, com a nota de rodapé mais bonita do mundo. Era o seu nome desenhado dentro de um córrego que corria para fora do papel.
Te vi como um rio. Indo, escorrendo, sempre tão independente do que lhe possa aguardar na próxima queda. Um rio jamais deixa de escorrer por temer sua foz.
Quando finalmente consegui sair daquele rio, que sequer cheguei a mergulhar, me vi envolvida pela fumaça dos cigarros já sem vida no cinzeiro. Era como o nevoeiro do seu rio ao amanhecer.
Escrever pra você é minha maneira de burilar-me, de fortalecer o meu caminho. Já não tenho nada a lhe esconder. Amontoo estas cartas que me acompanham há quatro anos, desde aquele dia que era vencido pela escuridão e seu caixão entrava no forno que lhe levaria às cinzas que hoje adubam nosso jardim. Ele está lindo, aliás.
As begônias estão como as de Macondo, como as imaginamos-um-dia-juntos, como quando enxergávamos o mesmo horizonte, sempre tão distante.
As cartas compõem meu testamento, que pretendo queimar comigo, com sua biblioteca, com esta casa que grita seu nome a noite inteira, e assim nos tornaremos uma coisa só, adubando este jardim. Pois é preciso burilar-se.