Tetos não-familiares 3 1032

por Rômulo

A pouca luz que entrava pela janela mostrava uma textura listrada naquele teto que era, pelo jeito, de gesso – bem diferente dos dois ou três tetos que conhecia de cor. Luisa tentou contar de cabeça a quantidade de tetos não-familiares a que foi apresentada nos últimos dez meses mas não conseguiu: eram muitos. Preferiu lembrar-se dos três.

O primeiro teto que de que Luisa se lembrava era o do quarto em que viveu até os doze anos, o ano em que sua mãe morreu. O forro era de madeira, mas a cor verdadeira sempre foi uma incógnita, pois ele era inteiro pintado de um rosa bem suave, assim como o resto do cômodo todo. Lá ela tinha o conforto do aconchego, do carinho, do abraço apertado que dona Maria Luisa lhe dava toda noite antes de ajeitar a coberta da filha, do “dorme bem, te amo” que a mãe dizia antes de dar um beijo na testa da menina e fechar a porta do quarto. Esse teto, tinha certeza, estaria para sempre em sua memória. Lembrar da mãe lhe trazia um sentimento nem de dor nem de alegria, uma pureza que inundava o coração e transbordava pelos olhos.

Havia também um teto todo colorido, cheio daquelas estrelinhas adesivas que brilham no escuro. A esse Luisa se acostumou durante os dois anos que viveu na Argentina, na casa da tia que a acolheu tão carinhosamente quando sua mãe faleceu. Era o teto de um quarto que, apesar de bastante grande, não oferecia lá muita privacidade, uma vez que o dividia com suas duas primas mais novas. Foi uma adolescência complicada, sem um cantinho onde ela pudesse ficar totalmente sozinha, mas ela nunca reclamou. A tia havia sido muito boa com ela e essa divisão de quarto, ela sabia, era coisa passageira. Quando voltou ao Brasil, seis anos mais tarde, Luisa até sentiu falta das estrelinhas, por algum tempo. Tinha se apegado à posição de algumas constelações que ela mesma tinha inventado, a partir da disposição aleatória dos astros de papel brilhante.

Até que chegamos ao outro teto que Luisa conhecia de cor, o terceiro deles. Era o do quarto de Renan. Desde que ele a deixara, ela tentava, sem sucesso, encontrar em vários cômodos diferentes o conforto que sentia quando olhava para o teto de madeira crua, de um marrom-quase-bege-de-tão-clarinho, quando os dois acordavam, se abraçavam e, mirando sempre o teto, contavam um para o outro os sonhos que tiveram, os planos para o dia, os sonhos que ainda tinham, os planos para a vida. Também era muito confortável, de um jeito diferente. Trazia o alento do porvir, da vontade de viver aquele amor até quando se tornassem dois velhinhos, acordando abraçados.

Hoje nenhum desses três tetos existem na vida de Luisa. Esse teto (pelo jeito, de gesso) que ela fitava, sem pressa, enquanto divagava, nem de longe abraçava sua alma do jeito que os outros três faziam. Mas era o que havia para hoje e, do que se há para hoje, nunca se deve reclamar. Segue a busca por um teto que volte a lhe confortar. Mais uma noite, mais um teto não familiar.

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3 Comments

  1. Giro, muito giro. Bom, não sei se foi inconsciente (acredito que não), mas você lembra que existe um capítulo do Evangelion que carrega esse mesmo título? “An Unfamiliar Ceiling”…
    Doido ver como essas coisas que víamos e liamos na nossa infância/juventude realmente formaram o que somos hoje. E digo isso por que essa frase, ‘um teto não familiar’ sempre ficou presente na minha cabeça.. acho a ideia muito forte. Mas ao contrário de você, que te uma fluência maior nas palavras, resolvi fazer outro projeto com essa ideia. Nessa última viagem foi muito evidente os ‘tetos não-familiares’ que encarei, só no camino foram 32 tetos diferentes. Eu comecei um projeto de fotografar todos os tetos por onde dormi, ou melhor acordei, por que acredito que eles são uma das melhores metáforas de uma viagem.
    Curto muito essa nossa sincronia que volte e meia se evidencia confirmando muitas coisas que penso.

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Dai-me Amor 0 3152

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”

 

 

Frio de matar Mendigo 0 3191

Estamos na copa de 2018, no Brasil, uma manhã chuvosa e um frio de matar mendigo, enfim, o descrito se consumou, estava indo até o posto próximo a minha casa e para chegar até o posto eu tinha que passar por uma trincheira, estava eu, fumando meu cigarrinho, eram exatamente 6:48 da manhã, quando, começo escutar um som de um violão e uma voz meio rouca, com soluços e demonstrando um tanto de álcool no sangue do seu portador, cantando o seguinte refrão:

– um toque de bola

– é nossa escola

– nossa maior ambição

– estou nas trincheiras

– Minha companheira pro frio, não resistiu

– enfim, esse é nosso Brasil

Em seu violão de apenas 3 cordas, esse mendigo, parecia ser o melhor no que fazia, chegando mais perto, percebi que ao seu lado, havia um corpo, enrolado em uma coberta, creio eu, que a única coberta que existia para eles dois, então, decidi parar e perguntar a ele o que havia acontecido, claro, que, eu já tinha uma certa noção do que tinha se passado, afinal, como disse no começo, estávamos na época em que o frio avassalador das cidades do Sul matavam mendigos.

– Olá meu amigo, desculpa lhe interromper, mas será que eu posso lhe ajudar de alguma forma?

– Olá meu senhor, eu não quer ser grosso com o senhor, mas, você só poderá me ajudar se tiver uma forma de voltar no tempo, você consegue?

– Pouts, infelizmente eu não consigo te ajudar desta forma, mas, me conte o que realmente aconteceu e vejo como posso te ajudar.

– Então senhor, essa é a resposta que eu estou acostumado a ouvir todos os dias, me perdoe, qual é seu nome?

– Meu nome é Roberto, amigo, e o seu qual é?

– Então seu Roberto, eu já não consigo lembrar meu nome, pois, de tão acostumado que estou em ouvir as pessoas me chamarem de mendigo, vagabundo, sem vergonha e ladrão, acabei que esqueci o meu nome verdadeiro, mas, se quiser, pode me chamar Zé, afinal, sou um Zé ninguém.

Nesse momento, eu fiquei sem palavras, por pelo menos uns 2 minutos, olhando para aquele mendigo que estava desacreditado totalmente da vida e de sua existência e claro, não conseguia deixar de olhar para aquilo enrolado no coberto, que parecia realmente um corpo, quando consegui voltar daquele “transe” eu criei coragem e perguntei.

– Então, não vou lhe chamar de Zé, pois, pra mim, você não é um Zé ninguém, irei lhe chamar de amigo, até que você consiga lembrar o seu nome e queira me falar, até lá, me perdoe, você pode me dizer quem está deitado aí do seu lado? Aquilo que você estava cantando realmente aconteceu?

– HAHAHAHA, Senhor Roberto, o senhor é engraçado, nunca, desde que eu perdi tudo, ninguém parou para me ouvir por mais de 1 minuto e agora você me aparece querendo conversar comigo, olha, eu não sou de falar meu nome para os outros, afinal, ninguém se preocupou em perguntar, eu não esqueci meu nome não, como você me parece ser alguém legal, meu nome é Heitor, a, em relação ao que você me perguntou sobre o que estava cantando, sim, é verdade.

Mais alguns minutos de silêncio, pois, foi a primeira vez que eu vi o fato consumado de algo que eu sempre ouvi falar.

– Heitor, poxa, que nome forte meu amigo, fico infeliz pelo que aconteceu, mas, quem de fato era essa pessoa que estava lhe acompanhando?

– Então, essa pessoa que estava me acompanhando, desde que perdi tudo é alguém que eu encontrei nas ruas meu nobre, é a única pessoa que me ofereceu metade da comida que ela tinha, metade do cobertor, metade da bebida, metade do dinheiro e o seu coração, ela, enxergou em mim o que mais ninguém da minha “família” conseguiu enxergar, logo que perdi todo o dinheiro que eu tinha, o emprego, eu fui expulso de casa, com uma mão na frente e outra atrás, eu não gosto de lembra dessa época, então, vou para de falar por aqui e agora, sabe aquele pergunta que o senhor me fez? Sobre me ajudar de alguma forma? O Senhor pode sim, me faz o favor de ligar para alguém e pedir para vir aqui e outro favor que lhe peço, de coração, me deixe sozinho com a minha amada, preciso me despedir, por favor, vá, sem falar uma palavra e nem sequer olha para trás, pois, nos dias em que eu precisava, foi exatamente o você e milhares de pessoas fizeram, um forte abraço e reflita.

Eu já não queria mais importunar o Heitor, porém, peguei uns trocados do meu bolso, como um sinal de rendição por todas as vezes que o ignorei e coloquei ao lado do corpo enrolado na coberta, voltei a acender o meu cigarro que havia apagado por falta de tragadas, não olhei para ele, nem para o corpo e apertei o passo em direção ao posto, comprei mais uma carteira de cigarro, uma bebidas e voltei pelo mesmo caminho, desta vez, preferi atravessar a rua, desde então, nunca mais o vi.

Texto: Giovane Santos
Ilustração: Helton de Prado Carvalho