A gente é esquisito e paga por isso 0 728

O bairro é parecido com outros. Há comércio local, gente que só aparece em casa para dormir, vizinhos que fofocam com tanta frequência sobre as picuinhas cotidianas quanto respiram, restaurantes agradáveis de preços honestos, outros tantos caros e nem assim tão bons, demora da polícia para atender qualquer ocorrência, não necessariamente por culpa dos profissionais da corporação, mas também por diversas outras razões, cidadãos e cidadãs que se debatem com as prestações às quais se submeteram para brincar com itens eletrônicos de uso pessoal, mesmo sabendo que eles serão todos trocados daqui dezoito meses, equipamentos de trânsitos instalados para, diz-se, proteger a população de motoristas irresponsáveis e outros elementos constitutivos de um ambiente urbano ligeiramente monótono, como são monótonos a maioria dos ambientes, urbanos ou não, sobretudo os que preferem esconder Vida por detrás de cortinas grossas de banalidades.

 

Homens e mulheres mais ou menos interessantes residem nestas ruas, dentre os quais Alice, ou Li, e seu Marido, Homem Violento. Não fazem parte das pessoas que têm muito a falar, e também costumam se recusar a ouvir seja o que for, seja de quem for, ao menos no mais das vezes. Enfim: gente da gente.

 

Ela apanha sistematicamente Dele quase todas as semanas há anos. O maior período de abstinência de violência sofrida durou três semanas felizes, um ano e meio atrás. Ele estava de férias do trabalho e viajou por alguns dias para a casa de parentes do interior para pescar, beber, colocar os pés para cima e relaxar um pouco. Parte expressiva dos moradores do bairro em que o casal reside define pessoas por suas profissões e aspirações profissionais e cursos profissionalizantes e desejos por cargos mais altos, algumas outras bobagens do gênero e subsequentes fugas de todo este contexto nas férias. Quem é você? Qual seu sobrenome, no que trabalha, com quem, quanto ganha, você tem sucesso, qual a marca da sua roupa de baixo, quais seus hobbies, o que ama, o que detesta, como trepa, qual é o seu sabão em pó, quem são seus amigos, que tipo de música gosta, qual seu shopping preferido, como assim acredita em Deus, por que gosta do Naldo e qual é sua outra subcelebridade favorita, já viu Velozes e Furiosos 24? Achou melhor que Transformers 19? O que você acha do programa da Regina Casé, gostou do último DVD do Fernando e Sorocaba, qual o ano do seu carro, por que chegou tão cedo, estudou até que série, chegou a conhecer aquele cara que morava lá perto da sua casa, que tipo de lugar frequenta e, chegando neles, o que faz? Além de outras perguntas que agradam alguns daqueles imbecis, seja fazendo-as ou respondendo-as. Ali é comum que o fluxo e a possibilidade da existência plena do conceito de meramente ser sejam negados. Não que alguém ali pense nestes termos. Porém, e de qualquer forma, outras realidades existem para quem as busca ou as cria.

 

Alice andou flagrando-se procurando ajuda, ou uma faca afiada o bastante, ou um travesseiro que sufocaria o ronco do Esposo para sempre, ou outra forma de terminar com o problema definitivamente com pouco barulho ou repercussão. Mas é difícil, claro. Apanhar dói, mas mudar assusta, o que é muito pior quando se está covarde.

 

O roteiro das noites de segunda a segunda dentro desta casa de dois quartos, sendo que um de bagunça depois que o filho único do casal mudou-se com a namorada para outro lugar, é aguardar pelos socos, chutes, xingamentos ou demais humilhações antes, durante ou depois das novelas da noite, reality shows e outros programas da televisão. Apesar de que, justiça seja feita, quando Miguel ainda morava com os pais não era nada assim tão diferente.

 

Na época em que se conheceram, o Marido tirou Alice de um bordel oferecendo-a conforto e vida nova – como se fossem as mulheres que precisassem de salvação. Na prática, apenas estendeu o domínio que já exercia sobre ela na casa de diversões adultas. A diferença é que o que antes era perpetrado através de uma relação comercial satisfatória para ambos os lados agora é vivido através de ameaças unilaterais de toda sorte e nenhuma satisfação de nenhum dos lados.

 

A então jovem Alice, desde os 11 acostumada à prostituição e dada ao uso excessivo de álcool e alucinógenos, teve seus poucos planos frustrados por um Qualquer Imbecil que nunca cumpriu o que prometia, nem sequer no campo da satisfação sexual.

 

Li nunca mais ouviu falar da família, mais por desinteresse que por impossibilidade de contatar mãe, pai, irmãs, primos e outros. E hoje é mulher agredida e caixa num supermercado de uma grande rede, destas que volta e meia têm dificuldades em contratar funcionários devido às cargas extenuantes oferecidas e aos baixos salários pagos por quem desempenha as atividades nelas propostas. Ela passa produtos, confere códigos de barra, tira lacres de alguns itens para o apito não tocar quando o cliente sair, olha bem para ver quanta gente falta atender, odeia fazer hora-extra, pede para outro funcionário pesar as frutas no lugar certo, pede mais moedas para troco, toma broncas do chefe, pergunta se o cartão é de débito ou de crédito, torce para os seguranças fecharem a porta de ferro na hora certa, bate ponto no minuto certo para entrar e de novo para sair.

 

De certa forma, é bom que poucas pessoas se interessem por este tipo de emprego, já que é provável que isto se deva ao fato de que há outras opções de trabalho disponíveis que agradam e pagam mais, mas por outro é péssimo, já que todo mundo, salvo os donos dos mercados, fica na fila de um destes estabelecimentos de vez em quando. Mas gente importante não se preocupa com filas, o que torna esta uma das regras básicas do funcionamento deste bairro e de outros lugares, talvez de toda a sociedade civilizada (sic). Os ambientes que se adaptem aos que os administram.

 

Alice andou pensando, enquanto andava ao lado do Escroto na volta da igreja, às 20h de algum domingo parecido demais com outros domingos, que podia chamar alguns dos amigos dos velhos tempos para sequestrar o casal e dar cabo do Cara num beco qualquer, depois de uma suposta reação de insatisfação pelo fato de Ele ter se recusado a dar para o grupo o pouco dinheiro que tem guardado no banco. O problema deste plano é que ela própria teria que fugir, e andar muito com aqueles malucos não ia dar em boa coisa durante muito tempo. E mais: quais deles ainda estariam vivos? Como ela os encontraria, e como pagaria pelo serviço? Esperava que com sexo e só. Mas nunca é sexo e só quando se lida com gente louca.

 

Ela podia empurrá-Lo para um atropelamento e chorar falsamente pela morte durante o velório, atribuindo-a a um lapso de fúria do Homem, que resolveu correr em meio aos carros e motos e barulhos para, talvez, se livrar dos gritos de algum dos inúmeros demônios arruaceiros internos que carregava.  Este fato renderia algumas conversas com o pessoal da padaria ou do posto de gasolina.

 

Há ainda o fato de que o Marido pesca, mas não sabe nadar muito bem. Outra hipótese configurada, desde que com a quantidade certa de cachaça, ou vodka, ou conhaque, ou qualquer coisa que ele preferisse no dia.

 

Acidentes não existem, sobretudo do ponto de vista de quem os gera conscientemente. Um pouco de veneno de rato podia cair em algum café com leite, mais café do que leite, que o Cidadão toma antes de sair para o trabalho. Este tipo de coisa acontece com frequência maior que o que seria saudável admitir.

 

Magia negra costuma ser disciplina de mais difícil acesso, mas de acesso ainda assim possível. Considerou estudar o tema a fundo, de envolta em trevas que tem se visto. Tudo é possível para aquele que crê.

 

No entanto, esses dias, andando pelo corredor de panelas do mercado antes de ir embora, imaginou que um acidente c
aseiro envolvendo grande quantidade de água fervente na cara Dele parecia uma opção bastante plausível. Ninguém precisava saber que o Maldito sequer cozinhava um ovo sem se complicar. Ela negaria ajuda e fingiria que nada havia visto. Faltavam detalhes, mas o grosso da coisa era simples. Tempo para pensar ela tinha, já que os dias são sempre longos quando se sente algo assim tão forte, seja amor ou asco.

 

E seja você quem for, nunca desrespeite quem faz seu jantar.

 

Ideias, ideias. Ideias. Algumas movem, outras param, outras encantam, outras tantas nada fazem, de inexpressivas que são. Pelo bem de todos, espera-se que ninguém se atreva a tentar compreender a origem delas e os campos infinitos de estrelas, gramados ou mares pelos quais voam, correm ou navegam. Ou queimam, enterram e abrem. Ou são e só.

 

O dia amanheceu. Ele acordou às sete. Ela, já de pé há alguns minutos, quase distraída:

 

– Que hora cê volta?

 

Ele não respondeu e entrou no banho.

 

Saiu para a firma.

 

Passou o dia inteiro desconfiado e atrasou mais que o usual para voltar para casa. Fedendo a álcool ele não estava. Seria uma amante a culpada? Tanto fazia, naquela altura. O Vagabundo jantou pela última vez e mandou-a fazer um chá de boldo para digerir direito “aquela merda de comida”.

 

Enquanto aguardava murmurou sobre quão gostosa uma moça da novela das sete era, e começou a descrever o que faria com ela caso tivesse a chance de encontrá-la em algum lugar, o que, obviamente, nunca aconteceria. Não mais.

 

Ela disse:

– Vai demorá pa fervê a água, que eu também vou tomá um poco.

 

Ele respondeu:

– Foda-se.

 

Marco Antonio Santos

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Distante das Linhas de Nazca 0 1275

Thiago Orlando Monteiro

Alguns vazios aumentam sempre que tentamos preenchê-los. E geralmente, porque tentamos preencher com algo que não nos cabe, ou no mínimo não nos pertence.

Não há muito que se ver aqui em cima. Menos ainda há o que se orgulhar. O cinzeiro está transbordando de cigarros. Por cima da mesa são quatro maços vazios e mais um pela metade. Tem outro vazio que não dá pra ver, embaixo do sofá, mas isso é sobre outro dia. As latinhas de cerveja entulhavam a mesa de centro até agora pouco, agora só restam sete, as outras estão sobre a pia. São quatro e meia da manhã, não há mais tempo de se arrepender de nada.

O fluxo de ideias vem numa vertente capaz de mudar o curso de um rio. São dois furacões que espalham tudo o que acabaram de criar. Instantes após o caos a calmaria tenta se fazer presente. Mas não. Esse tipo de sentimento não é bem-vindo, não agora. O cartão de crédito transforma a pequena montanha em linhas. Tudo começa novamente. E só acaba um grama depois.

Nossos impulsos ruem nossa integridade. E como costuma acontecer, ruínas geram ruínas.

O nascimento do sol enfim consegue barrar o curso desse desastre natural. A sensatez, rara nessas condições, permite que três latas de cerveja descansem na porta da geladeira. Um banho quente ajuda a relaxar o corpo. Mas agora, nada é capaz de parar a mente. Já debaixo do lençol o coração bate como uma britadeira. O medo da vida toma conta outra vez. É curioso como tudo sempre lembra o seu contrário. Minha maior vontade era de não estar aqui. Perto de tudo o que me corrói e tão distante das linhas de Nazca.

Escrito pelo Gabriel Protski

Ilustrado pelo Tho

Carta a Hunter S. Thompson 0 1212

A temporada de futebol americano ainda não acabou. Ainda faltam bombas. Faltam andanças. Faltam confusões. Ainda falta muita diversão. Que venham mais 67. Mais 17. Que apenas venham. Mesmo que doa. Mesmo que canse. Mesmo que seja obrigado a conviver com o gosto de cloro. Talvez isso não seja plano para mais ninguém. Não importa. Que sigam os jogos, a temporada está só começando.

 


 

Carta de suicídio de Hunter S. Thompson:

“A temporada de futebol americano acabou.

Chega de jogos. Chega de bombas. Chega de andanças. Chega de natação. 67 anos. São 17 acima dos 50. 17 mais dos que necessitava ou queria. Aborrecido. Sempre grunhindo. Isso não é plano, para ninguém. 67. Estás ficando avarento. Mostra tua idade. Relaxe. Não doerá”

 


 

Gabriel Protski