463 Solitude 0 941

Possuia dinheiro para uma única passagem quando entrei no ônibus Solitude. Eram 18 horas. Passara a madrugada e o dia pensando no que faria e agora havia tomado minha decisão. Normalmente eu vinha até o ponto apenas para deixá-la, mas dessa vez foi diferente, eu vim mais cedo. Sentei-me ao fundo e logo os assentos estavam todos ocupados. No entanto, era como se eu estivesse sozinho.

Entrar no Solitude era um alívio e um tormento. Iria para casa após um cansativo dia de labuta, mas ainda teria essa cotidiana aporrinhação a enfrentar. Gente suada te apertando por todos os lados, a preocupação de segurar firme sua bolsa e não ser assediada por ninguém. Sempre que pego o ônibus nesse horário, das 18 horas e 22 minutos, penso a mesma coisa: o quão irônico é um ônibus chamado Solitude estar abarrotado de gente.

Já havia saído do centro. Eu procurava o lugar ideal. Logo passamos pelo Jardim Botânico. Bonito lugar com um sol de fim de tarde. Porém, nuvens muito carregadas se aproximavam. Uma aguaceira daquelas cairia a qualquer momento. É, assim eram as coisas da vida, desmoronavam de repente.

Um dia comum, tranquilo. Acho que finalmente estava conseguindo levar minha vida em frente. Sentia-me livre. Já bastavam de confusões, lamúrias. Mas acho assim é a vida, num dia parece que tudo vai desmoronar, e no outro sua única preocupação é não ter trazido um guarda-chuva para esse temporal que acabou de começar.

Encontrei o lugar certo. O ônibus ia a alta velocidade pela BR. Pedi para descer no próximo ponto. Voltei um pouco, caminhando até o local. Começou a chover e eu fiquei ali mesmo debaixo d’água. Quem sabe um raio me acertaria. Não, não podia ser assim. Eu precisava esperar o próximo ônibus.

Estávamos na BR. Em breve eu chegaria em casa. O motorista não se deixou inibir pela chuva forte e dirigia rapidamente. Foi quando ouvimos, ou vimos, ou sentimos, uma freada brusca. Nessas horas tudo é tão rápido e tão devagar que demoramos a saber o que ocorreu. O fato é que o ônibus freou e atingiu alguma coisa. O baque foi forte. Os passageiros, desprevenidos, foram arremessados para frente, caindo pelo veículo uns em cima dos outros. Levantei-me e vi algumas pessoas feridas, mas aparentemente nada grave. É que o ônibus não chegou a parar com a batida. O que quer que tenha sido, ele passou por cima. As pessoas se acumularam nas janelas traseiras para tentar ver o que era. Assim que abriram as portas, alguns desceram para ver, mesmo na chuva. Eu fiz o mesmo.

E lá vinha ele, veloz. 463 Solitude. Amarelo e  inexorável, cortava a tempestade para cumprir o seu dever. Hoje sua função seria outra, e ele nem mesmo sabia. Viria vingar minhas frustrações. Porque esse tipo de coisa, quando a gente faz, não faz só para desaparecer ou fugir. A gente quer mostrar para alguém por que fugiu. Fomos tão castigados pela vida que queremos respingos de nosso sangue em outras mãos. Naquelas mãos.

 A hora chegou. Esperei que se aproximasse para dar os derradeiros passos. E lá vinha ela, encontrar sua solitude com a minha solidão.

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Murilo

Foto: Chris JL via Compfight cc

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6519

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai