
Possuia dinheiro para uma única passagem quando entrei no ônibus Solitude. Eram 18 horas. Passara a madrugada e o dia pensando no que faria e agora havia tomado minha decisão. Normalmente eu vinha até o ponto apenas para deixá-la, mas dessa vez foi diferente, eu vim mais cedo. Sentei-me ao fundo e logo os assentos estavam todos ocupados. No entanto, era como se eu estivesse sozinho.
Entrar no Solitude era um alívio e um tormento. Iria para casa após um cansativo dia de labuta, mas ainda teria essa cotidiana aporrinhação a enfrentar. Gente suada te apertando por todos os lados, a preocupação de segurar firme sua bolsa e não ser assediada por ninguém. Sempre que pego o ônibus nesse horário, das 18 horas e 22 minutos, penso a mesma coisa: o quão irônico é um ônibus chamado Solitude estar abarrotado de gente.
Já havia saído do centro. Eu procurava o lugar ideal. Logo passamos pelo Jardim Botânico. Bonito lugar com um sol de fim de tarde. Porém, nuvens muito carregadas se aproximavam. Uma aguaceira daquelas cairia a qualquer momento. É, assim eram as coisas da vida, desmoronavam de repente.
Um dia comum, tranquilo. Acho que finalmente estava conseguindo levar minha vida em frente. Sentia-me livre. Já bastavam de confusões, lamúrias. Mas acho assim é a vida, num dia parece que tudo vai desmoronar, e no outro sua única preocupação é não ter trazido um guarda-chuva para esse temporal que acabou de começar.
Encontrei o lugar certo. O ônibus ia a alta velocidade pela BR. Pedi para descer no próximo ponto. Voltei um pouco, caminhando até o local. Começou a chover e eu fiquei ali mesmo debaixo d’água. Quem sabe um raio me acertaria. Não, não podia ser assim. Eu precisava esperar o próximo ônibus.
Estávamos na BR. Em breve eu chegaria em casa. O motorista não se deixou inibir pela chuva forte e dirigia rapidamente. Foi quando ouvimos, ou vimos, ou sentimos, uma freada brusca. Nessas horas tudo é tão rápido e tão devagar que demoramos a saber o que ocorreu. O fato é que o ônibus freou e atingiu alguma coisa. O baque foi forte. Os passageiros, desprevenidos, foram arremessados para frente, caindo pelo veículo uns em cima dos outros. Levantei-me e vi algumas pessoas feridas, mas aparentemente nada grave. É que o ônibus não chegou a parar com a batida. O que quer que tenha sido, ele passou por cima. As pessoas se acumularam nas janelas traseiras para tentar ver o que era. Assim que abriram as portas, alguns desceram para ver, mesmo na chuva. Eu fiz o mesmo.
E lá vinha ele, veloz. 463 Solitude. Amarelo e inexorável, cortava a tempestade para cumprir o seu dever. Hoje sua função seria outra, e ele nem mesmo sabia. Viria vingar minhas frustrações. Porque esse tipo de coisa, quando a gente faz, não faz só para desaparecer ou fugir. A gente quer mostrar para alguém por que fugiu. Fomos tão castigados pela vida que queremos respingos de nosso sangue em outras mãos. Naquelas mãos.
A hora chegou. Esperei que se aproximasse para dar os derradeiros passos. E lá vinha ela, encontrar sua solitude com a minha solidão.
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Murilo