Bolha 0 973

por Jadson

Duas batidas na porta e ele não se levanta. Do outro lado, o carteiro continua insistindo. Bate mais uma vez, chama pelo nome que consta na prancheta, mas ninguém atende. A sala tem teto alto e paredes brancas com algumas marcas de sujeira. Estão lisas, sem relógio, pôster ou quadro. Um tapete redondo de crochê. Uma poltrona velha de couro marrom. O homem está sentado com o queixo colado ao peito, braços sobre os encostos, pernas separadas, boca aberta e babando. Não está dormindo, mas com os olhos abertos, paralisados. Dopado desde a noite anterior, sem dormir, sem se mexer. Pendurada em uma veia grossa do pé direito está a seringa.

A alguns metros dele, no chão, perto da passagem para a cozinha está o corpo da garota, prostrado, pernas dobradas em foram de ‘s’ e o rosto no chão, como uma indígena adoradora do fogo, braços esticados. Depois de morta por estrangulamento com cadarço, exatamente naquela posição, teve a mão esquerda cortada com um só golpe de lâmina. Está exatamente no mesmo lugar desde então, nada foi mexido. A grande poça de sangue está quase secando, parece esmalte vermelho derramado no chão de revestimento sintético.

São quatro e meia da tarde e o carteiro sente o cheiro estranho que passa pelas frestas da porta. Dá pouca importância ao detalhe, quer terminar a rua e ir embora. Pelo menos o trocaram de zona, na anterior tinha cansado de fugir de um pitbull de rua, que não era de ninguém, mas que todos os vizinhos alimentavam. O cão se fora, mas em seu novo caminho outra pedra aparecera. Aquele prédio sem porteiro, sem elevador, sem corrimão nas escadas. Era obrigado a entrar, a agência do bairro disponibilizava a chave da porta do hall de entrada e ele era obrigado a subir os treze andares entregando cartas e encomendas. Queria se livrar logo e por isso aquele cheiro não lhe dizia nada, apenas dava repulsa. Seu cérebro canino o fez sair correndo e xingando em voz contida.

Antes, porém, colou o bilhete na porta intimando o morador comparecer até a agência postal e retirar a caixa, selada e carimbada em Fênix, no noroeste do estado. Desistiu de subir os outros sete andares, amanhã terminaria de entregar as outras cartas.

O barulho dos passos deixando o corredor foi ouvido no interior do apartamento do sexto andar, mas nada lá dentro se moveu. O viciado permaneceu intacto, respirando devagar. Fechou os olhos e caiu em sono profundo. Entrou na bolha.

Sonhou que estava de volta à pequena vila com ruas de terra onde cresceu com a tia. Andando por um campinho verde, onde jogava bola, viu do outro lado uma menina, pele branca, cabelos enrolados, com um vestido bege de alças finas, ela o esperava do outro lado, o chamava, acenava e ele planou em direção a ela, ouvindo sons suaves, ventos com tons avermelhados o carregaram até encontrar a mão da menina, ela o puxou e ambos caminharam por algumas quadras até chegar ao lago. Embaixo de uma árvore, que sustenta um balanço, eles sentaram, colocaram os pés na água e ela passou a mão esquerda lentamente atrás do cabelo dele. Ele respirou, pensou em dizer algo, olhou para cada detalhe do rosto da menina branca, mas desistiu de falar. Temia que qualquer movimento estourasse a bolha.

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Frio de matar Mendigo 0 3191

Estamos na copa de 2018, no Brasil, uma manhã chuvosa e um frio de matar mendigo, enfim, o descrito se consumou, estava indo até o posto próximo a minha casa e para chegar até o posto eu tinha que passar por uma trincheira, estava eu, fumando meu cigarrinho, eram exatamente 6:48 da manhã, quando, começo escutar um som de um violão e uma voz meio rouca, com soluços e demonstrando um tanto de álcool no sangue do seu portador, cantando o seguinte refrão:

– um toque de bola

– é nossa escola

– nossa maior ambição

– estou nas trincheiras

– Minha companheira pro frio, não resistiu

– enfim, esse é nosso Brasil

Em seu violão de apenas 3 cordas, esse mendigo, parecia ser o melhor no que fazia, chegando mais perto, percebi que ao seu lado, havia um corpo, enrolado em uma coberta, creio eu, que a única coberta que existia para eles dois, então, decidi parar e perguntar a ele o que havia acontecido, claro, que, eu já tinha uma certa noção do que tinha se passado, afinal, como disse no começo, estávamos na época em que o frio avassalador das cidades do Sul matavam mendigos.

– Olá meu amigo, desculpa lhe interromper, mas será que eu posso lhe ajudar de alguma forma?

– Olá meu senhor, eu não quer ser grosso com o senhor, mas, você só poderá me ajudar se tiver uma forma de voltar no tempo, você consegue?

– Pouts, infelizmente eu não consigo te ajudar desta forma, mas, me conte o que realmente aconteceu e vejo como posso te ajudar.

– Então senhor, essa é a resposta que eu estou acostumado a ouvir todos os dias, me perdoe, qual é seu nome?

– Meu nome é Roberto, amigo, e o seu qual é?

– Então seu Roberto, eu já não consigo lembrar meu nome, pois, de tão acostumado que estou em ouvir as pessoas me chamarem de mendigo, vagabundo, sem vergonha e ladrão, acabei que esqueci o meu nome verdadeiro, mas, se quiser, pode me chamar Zé, afinal, sou um Zé ninguém.

Nesse momento, eu fiquei sem palavras, por pelo menos uns 2 minutos, olhando para aquele mendigo que estava desacreditado totalmente da vida e de sua existência e claro, não conseguia deixar de olhar para aquilo enrolado no coberto, que parecia realmente um corpo, quando consegui voltar daquele “transe” eu criei coragem e perguntei.

– Então, não vou lhe chamar de Zé, pois, pra mim, você não é um Zé ninguém, irei lhe chamar de amigo, até que você consiga lembrar o seu nome e queira me falar, até lá, me perdoe, você pode me dizer quem está deitado aí do seu lado? Aquilo que você estava cantando realmente aconteceu?

– HAHAHAHA, Senhor Roberto, o senhor é engraçado, nunca, desde que eu perdi tudo, ninguém parou para me ouvir por mais de 1 minuto e agora você me aparece querendo conversar comigo, olha, eu não sou de falar meu nome para os outros, afinal, ninguém se preocupou em perguntar, eu não esqueci meu nome não, como você me parece ser alguém legal, meu nome é Heitor, a, em relação ao que você me perguntou sobre o que estava cantando, sim, é verdade.

Mais alguns minutos de silêncio, pois, foi a primeira vez que eu vi o fato consumado de algo que eu sempre ouvi falar.

– Heitor, poxa, que nome forte meu amigo, fico infeliz pelo que aconteceu, mas, quem de fato era essa pessoa que estava lhe acompanhando?

– Então, essa pessoa que estava me acompanhando, desde que perdi tudo é alguém que eu encontrei nas ruas meu nobre, é a única pessoa que me ofereceu metade da comida que ela tinha, metade do cobertor, metade da bebida, metade do dinheiro e o seu coração, ela, enxergou em mim o que mais ninguém da minha “família” conseguiu enxergar, logo que perdi todo o dinheiro que eu tinha, o emprego, eu fui expulso de casa, com uma mão na frente e outra atrás, eu não gosto de lembra dessa época, então, vou para de falar por aqui e agora, sabe aquele pergunta que o senhor me fez? Sobre me ajudar de alguma forma? O Senhor pode sim, me faz o favor de ligar para alguém e pedir para vir aqui e outro favor que lhe peço, de coração, me deixe sozinho com a minha amada, preciso me despedir, por favor, vá, sem falar uma palavra e nem sequer olha para trás, pois, nos dias em que eu precisava, foi exatamente o você e milhares de pessoas fizeram, um forte abraço e reflita.

Eu já não queria mais importunar o Heitor, porém, peguei uns trocados do meu bolso, como um sinal de rendição por todas as vezes que o ignorei e coloquei ao lado do corpo enrolado na coberta, voltei a acender o meu cigarro que havia apagado por falta de tragadas, não olhei para ele, nem para o corpo e apertei o passo em direção ao posto, comprei mais uma carteira de cigarro, uma bebidas e voltei pelo mesmo caminho, desta vez, preferi atravessar a rua, desde então, nunca mais o vi.

Texto: Giovane Santos
Ilustração: Helton de Prado Carvalho

O estranho caso da sommelière de lágrimas 1 3465

Por Mariana Porto

 

No dia em que nosso amor morreria, você me trouxe um vinho de qualidade questionável e disse “isso é pra você aprender que a vida pode te surpreender”. Na hora, juro que fiquei inicialmente sem entender, já que o fato do vinho ser meio agressivo eu já esperava. No entanto, confesso que isso jamais tinha sido um problema em nossa relação.

Sem medo de parecer clichê, posso dizer que seus beijos sempre harmonizaram tão bem, e que sua boca me preenchia com tanta delicadeza, que mesmo se eu tivesse acabado de tomar uma dose da pior cachaça da praça, ainda assim, me desceria com o frescor mais equilibrado que já provei.

Mas, naquele dia, eu senti tudo como um grande coice, de uma brutalidade que foi realmente inesperada. Você segurou meu rosto, se despediu, e me deu um beijo seco. Sua mão estava suada, mas entendo que também não deve ter sido fácil pra você — tanto me dizer adeus, quanto tomar aquele vinho ruim.

Você saiu e bateu a porta, me deixou e deixou aquela garrafa que, no fim, fiz questão de guardar como souvenir, só pra lembrar do azedume que nosso amor se tornou. Serviu também para não esquecer de que você me largou ali, sozinha, e tomando aquele vinho vagabundo diluído em uma tristeza profunda. “Sommelière de lágrimas”, é um título eu ostento até hoje por sua causa.

Mas, sendo bem sincera, admito que eu guardo essa garrafa vergonhosa principalmente como uma artimanha pra tentar me impedir de sentir saudades. Essa saudade de quando eu poderia me embriagar inteira de você, e ainda me manter de pé. Feliz. Com a boca preenchida, com o frescor do amor novo. Porque eu sinto sim saudades. Todos os dias. Desde o dia que nosso amor pareceu que morreu.

“Oh you are in my blood like holy wine
You taste so bitter
And so sweet oh
I could drink a case of you darling and I would
Still be on my feet
Oh I would still be on my feet”