
Tô ouvindo uma sirene dentro da minha cabeça. Tá assim desde a hora em que acordei, com um susto, claro. Não entendi como troquei o Nokia Tunes por esse barulho insuportável. Desligo o celular e o barulho se vai, pro meu alívio. Abro o chuveiro e o barulho volta, pra minha surpresa. Ligo o som do carro e lá está ele, alimentando meu medo. Dou bom dia para o meu chefe e em resposta a sirene ecoa novamente, pro meu desespero. Vou ao banheiro lavar o rosto, péssima ideia a de abrir a torneira. Fico agachado no cantinho do reservado, ao lado do vaso. As paredes, em fúria, vieram em minha direção. Preciso sair daqui. Desço do prédio pelas escadas, as paredes do elevador são primas das do banheiro. Eu sei. Não vão me pegar. Entro no primeiro táxi que vejo. Acho que cortei a vez de uma senhora manca. Hoje preciso mais disso que ela. Precisava. Abandono o carro em menos de uma quadra, impossível chegar em casa com três sirenes naquela porra. Na rua tem sirene pra caralho, uma sinfonia dantesca. Saio correndo. Não consigo mais segurar o choro, que se foda.
É difícil achar as chaves no bolso. Chego em casa com os tímpanos prestes a explodir. Ando apressado de um lado para outro da casa. Arranco toda minha roupa, rasgando parte dela. Três socos desmontam o armário do banheiro. Dois chutes o criado mudo. Quebro a lâmpada do quarto com uma vassoura. Essas coisas acalmam a sirene. Não por muito tempo, se me acalmo muito, ela volta mais forte. Filha da puta. SIRENE FILHA DA PUTA. Pego um caco da lâmpada do chão. Faço uns cortes no meu braço. Quase emudece. É isso, ela quer que eu me destrua. A sirene quer que eu me torture. Ela quer purificar meu corpo. Corto meus braços o suficiente pra conseguir uns minutos de paz. Me acalmo. O caos vai se dissipando aos poucos. Agora choro bem baixinho, não quero que a sirene ouça.
Tento lembrar da última coisa que ouvi antes da sirene. Não foi hoje. Deve ter sido ontem. Foi ontem. Deve ter sido antes de dormir. Deve ter sido o barulho da tevê. Não, espera, não foi. Ontem não consegui ver tevê. Ontem briguei por umas três horas com a Marcela. Deus, como aquela mulher fala. Sua voz fez questão de se sobrepor a do Cléber Machado. Nem sei quanto deu o jogo. Nem o que a gente conversou. Confesso que pouco participei disso que seria um diálogo. Tava um tanto ocupado, sorvendo a meia garrafa de whisky que tava na gaveta. E não dei nem meia atenção praquele manifesto patético. Sei que ela citou minha apatia. Minha inércia. Supostos medos. E mais umas trezentas coisas das quais ela sempre fala, inclusive sobre minha mãe. No fim ela conseguiu toda minha atenção. Depois de juntar todas as roupas, tacou a garrafa com um fundinho de bebida na parede. Disse “adeus, Carlos” e bateu a porta. Sei como é o som de uma porta batendo. A Marcela mesmo já me proporcionou esse barulho algumas vezes. Mas não lembro de tê-la ouvido ontem. Nem nada depois. Acho que a última coisa que ouvi foi esse estúpido e seco “adeus, Carlos”. Pois é, foi sim. A boca cheia de rancor. Todos os músculos contraídos, concentrados em me odiar. Aquela voz amarga. Adeus, Carlos. Foi isso. Adeus.
Acordo com o saudoso Nokia Tunes. Tenho medo de desligar o alarme. Crio coragem, vou pro chuveiro. O barulho da água me acalma. A água nos cortes me incomoda. Adeus, Carlos. Acho que a sirene foi embora. Invento uma mentira pro meu chefe. Tio doente, desespero, pressa, deixei até o carro no estacionamento. Álibi perfeito. Adeus, Carlos. Abro três planilhas do excel. Seis relatórios pra fazer. Se ao menos Carlos conseguisse se concentrar. Adeus. Faz seis dias que não ouço a sirene. Seis dias. Liguei pra Marcela, setenta e duas vezes. Não atendeu, nem ligou de volta. Tô exausto. Tem um navio ancorado na minha cabeça. Tenho trabalhado muito. Acho que isso é bom. Bom pra esquecer. Adeus, Carlos.
Porra, que saudade da sirene.
Gabriel Protski