por Rafael
Após anos morando nas ruas, chego à conclusão de que pressa e vida pouco se dizem respeito. Durante anos corri atrás de prazos e metas para um futuro em que o mundo estaria ao meu alcance. Mas só agora, sentado à margem desta calçada, sinto que finalmente alcancei minha vida.
Aqui como, durmo e faço tudo o que vocês fazem em suas casas. Talvez com a diferença de que quando acordo querendo ir ao banheiro eu preciso andar dois quarteirões (até a praça).
Precisei de tempo e paciência para conseguir a paz que me permite estar. Dia após dia vaguei por quase todos os becos desta cidade.
Quando somos jovens, confundimos constantemente o medo de ficar, com a vontade de estar em todos os lugares. E nos projetamos mundo afora, endurecendo a cada esquina. E era isso o que eu sentia: medo de estar só, comigo.
Fingia buscar algo ou alguém, quando apenas evitava olhar o espelho. Forjava uma eterna busca, quando no fundo estava em fuga.
Do que fugi primeiro?
Das primeiras fugas de minha vida, já nem lembro. Mas tenho silêncios e dores do dia em que me deparei com o pavor que me fez fechar a porta da casa que construí com minhas próprias mãos durante três anos. Nunca mais voltei.
Era tarde, era sol, 8 de agosto de 2010 e aniversário de quatro anos do casamento mais lindo desse mundo: meu e de Irene.
Era também dia dos pais, mas a data nunca me trouxe alegria, apenas a esperança de que no ano seguinte eu teria um pai. Jamais aconteceu.
Naquele domingo, mesmo sem um pai, eu estava feliz. Trabalhei normalmente no posto de gasolina, até as três da tarde. Completei o tanque de uma meia dúzia de famílias em festa. Coloquei vintão em carro de gente nova em busca de vidas inimagináveis, e às três e vinte já estava diante do portão preto de nossa casinha branca.
Trazia na mão uma flor pra Irene. Dessas que caem das árvores e nos encontram na rua.
Entrei. O silêncio da casa era comum nos dias em que Irene dormia depois do almoço. Mas a cama estava arrumada.
Sobre meu travesseiro solitário, um bilhete escrito em azul, com o típico garrancho de Irene: “Não me procure, por favor”.
Pouco entendi e saí procurando pela casa. Sala, banheiro e cozinha eram tudo além de nosso quarto. Nada.
Sobre o fogão, uma única panela. Na tampa, um novo bilhete, também em azul, aparado por uma colher: “Meu último feijão, pra você”.
A panela estava morna, o feijão estava fresco. Irene teria saído umas duas horas antes. Pra onde? Nunca poderia saber. Jamais iria contra as vontades de Irene.
Comi o que pude do feijão ali, em pé, diante do fogão impecavelmente brilhoso.
Tapei a panela, virei as costas, andei até a porta da sala, saí e fechei. Sequer tranquei. Deixei as chaves por lá. A rua agora seria a minha casa.
Não poderia viver em um lugar que respirasse Irene. Sufocaria. Seria engolido pela morte daquelas paredes brancas.
Em três meses foram quatro cidades. Perambulando por ruas, endurecendo a cada esquina. Para que seguisse sem jamais contrariar Irene.
A dor da solidão me destruía a cada segundo. A cada lembrança de um passado que não resistiu, do pai que não veio.
Até que pude admitir que estava sozinho no mundo.
Uma vez li uma entrevista com uma escritora famosa que dizia que o ser humano é um ser solitário. Que cedo ou tarde se descobriria só, no mundo. Era eu.
Sou eu. Sem a pressa de ser.
Desde então, leio sempre os jornais do dia anterior, que pego no lixo. Sem problemas, pois a vida não tem pressa. As coisas de ontem ainda existem hoje. O tempo corre apenas pra quem foge do amanhã. Ou: “O tempo corre com a gente junto”, como dizia Irene.
Cuido dos carros que estacionam aqui na rua só quando preciso de algum trocado. Sinto é nojo daquela cara de medo que as madames me olham, sempre abraçando as bolsas, como aquelas merdas de couro e marcas valessem alguma coisa pra mim.
Já tive vergonha de pedir dinheiro por aí, mas não tenho mais. É uma atividade tão humilhante quanto a de todas as centenas de pessoas que passam aqui, diante do meu colchão, todos os dias. Com a diferença de que elas se sentem dignas por possuírem uma carteira assinada em troca do tédio diário e café morno na garrafa térmica.
Muitos têm pena de mim. Passam e me olham com piedade, virando o rosto se eu retribuo o olhar. Já não lembro do último sorriso que me dirigiram. Sequer “bom dia” recebi essa semana. Nem ligo mais.
De lá pra cá, deixei de correr atrás de um tempo que não chegaria, pois somente com calma conseguimos viver no presente, sem atropelar os nossos sonhos.
Sim, gente. Morador de rua também sonha.
Já sonhei em reencontrar Irene numa esquina improvável qualquer, ter uma nova casinha, montar família, ser pai, levar meus filhos pra Disney, mas hoje não. Sou desses solitários, que gosta de se ouvir no silêncio entre os desesperos das ruas.
Nunca mais vi Irene, nem voltei na nossa antiga casa. Mas ainda lembro do gosto daquele último feijão e dos silêncios que inundaram tudo por lá. Lembranças.
Lembranças que chegam até mim neste dia dos pais de um ano que já não me importa qual é.