
“Você é magro e orelhudo. Se bater um vento você voa” caçoava o maior rapaz sobre o pequeno. Ao redor, vários outros riam da piada tantas vezes repetida. Pintados com óleo sobre a tela, os cúmplices da cena guardavam um realismo admirável e imenso cuidado com os detalhes, dignos de um Rembrandt. Quem dera a pintura fosse de Dali, então quem sabe o vento, em um ímpeto surrealista, pudesse arrastar para longe o menino orelhudo. Seus algozes se afogariam em gargalhadas, mas ao menos o menino não estaria mais ali para ouvir. Ou quem dera fosse um Van Gogh, que com traços espessos viesse lhe cortar fora as orelhas, acabando com o motivo de toda a desgraça. Mas não, mantia-se ali a troça indefensável sobre o pobre coitado.
Ao lado, um casal de jovens digladiava num alto relevo. Em verdade não eram um casal, embora um deles quisesse que fossem. E era justamente esse o tema da discussão, naquela obra talhada em madeira, chamada O Toco. “Eu te amo, me dá uma chance” implorava o rapaz. “Você sabe que eu não sinto o mesmo por você” respondia a moça, menos delicada do que sua saia rodada. “Não é possível que não haja nada por trás de toda essa amizade” insistia o coitado, com cara de pau talhada pelo formão. “Não” ela respondia, “nós somos só amigos, e é isso que sempre seremos”.
As paredes falavam naquele lugar. Na parede ao fundo, por exemplo, um homem proferia um ferino discurso no afresco chamado Olho da Rua. Engravatado com toda sua pompa, erguia um braço apontando para algum lugar. A pintura desse braço estendia-se pela porta e, na extremidade do dedo indicador, encontrava-se o olho mágico. Aquele círculo de vidro, aliás, parecia ser o único contato com o exterior daquele cômodo, com entrada lacrada e sem janelas.
Com tal proteção e tantas obras de arte, não estaria longe da verdade quem pensasse que estávamos na ala de algum museu, ou mesmo num cofre de colecionador. Contudo, estávamos, em verdade, dentro de um ateliê. Um quartinho isolado nos fundos da casa de um artista ainda desconhecido pelo mundo.
Ali, ele exercia seu talento para as mais diversas artes plásticas, desde que era garoto. Orgulhava-se de sua primeira obra, uma escultura conceitual feita com cintas de couro, que entrelaçadas entre si, como serpentes, ocupam posição de destaque no local. A Surra era seu nome.
O artista já acumulava um acervo de mais de cinqüenta peças de sua autoria, mas não faltavam novas inspirações para continuar sua obra. No momento, trabalhava em um nu artístico com acrílico sobre a tela. A mulher nua apoiava-se em um móvel e segurava um cigarro aceso na boca. Não era belíssima, mas sem dúvida desejável. Suas gordurinhas lembravam os nus de outrora, quando os excessos eram valor, e não defeito. No entanto, seus grandes seios e seu olhar provocante faziam-na atraente para qualquer época. Ela olhava com desdém para fora da tela, visivelmente decepcionada após uma foda malsucedida. Tirava o fumo da boca e dizia “Que merda foi essa?”.
Assim ele fazia. Transformava os pequenos infortúnios cotidianos em arte. Muitos outros artistas também, mas dificilmente com tanto cuidado. Este tinha apreço pelos detalhes de cada situação. Alguns poderiam achar que por mero perfeccionismo, mas, em verdade, fazia isso para que se lembrasse. Para ter certeza que sempre poderia voltar a reviver cada momento em suas minúcias. Cada ato, cada rosto.
Se alguns homens levavam desaforos para casa, podíamos dizer que este não só os levava, como os colecionava. Com cada sapo que engolia, fazia de seu ateliê um brejo de ressentimentos. E quando aquele pequeno quartinho não mais suportasse novas obras, seria o momento de revelá-las ao mundo em um derradeiro quadro, sarapintado com os mais diversos tons de sangue.
Murilo
Crédito Imagem: Franck Réthoré via Compfight cc
Muito bom.
valeu =)
muito bom! Parabéns pelo texto!
Obrigado =)
Muito bom (: adorei a riqueza dos detalhes!
Que legal. Obrigado, Bruna 🙂