Este não é para você 2 824

por Murilo

 

– Eis você aqui novamente. Não cansa de mim?

– Desculpe, eu gosto de você, sabe. Acho que me faz bem.

– Eu não sei. Sinto que você me preenche. Mas volta e meia vem com as mesmas histórias, as mesmas lamúrias. O que você espera que eu faça? Que eu mude alguma coisa? O que foi já foi. Um ponto final faz passado tudo que existe antes dele.

– Eu entendo, mas não posso evitar, sabe. Quando tudo me falta é você que continua aqui, à minha espera.

– Eu estarei sempre aqui, você sabe. Mas será que isso é mesmo bom para você? Às vezes acho que você coloca sobre mim todas as suas esperanças.

– Acho que sim. E sei o quão ingrato isso pode ser. Tenho consciência de que isso pode não dar em nada. Coloco meu coração na ponta desta caneta, na esperança de que alguém lembre do que a gente já viveu.

– Da nossa história só a gente sabe, meu querido. Você acha que mais alguém realmente está interessado no que dizemos um ao outro? Você não sabe nada.

– No fundo ainda imagino o dia em que alguém vá descobrir o valor dessas linhas sem valor. Um tanto utópico, eu sei.

– Ninguém realmente se importa, você sabe disso.

– Alguns se importam. E acho que são esses que me mantém vivo. Por esses poucos eu acabo sempre voltando aqui.

– Por que você não me larga e vai viver sua vida? Tem coisa mais interessante por aí. Olha, tá rolando jogo da Copa. O que está fazendo aqui? Que tipo de pessoa é você?

– Fico surpreso em você me perguntar isso, com quem me abri tantas vezes. Se você não me conhece, tenho certeza que nem eu mesmo me conheço.

– No fundo é a mesma coisa, meu bem. Eu sou você por escrito. Sou seu reflexo num espelho de papel. Seu alter ego. Conheço sua força e suas fraquezas, os anjos e os demônios. Mas se não pode me largar, por que então não fica apenas comigo?

– Você não me basta. Eu seria recluso como um Lobo da Estepe. Já leu esse?

– Só conheço os seus garranchos, meu bem, e de mais ninguém.

– Ah, é verdade. Uma pena. Imagine quão glorioso ser o caderno de Hesse. Se fosse você, eu teria inveja. Mas, se quiser, um dia posso transcrever alguns trechos aqui.

– Talvez já os tenha transcrito, disfarçados de suas palavras, e nem saiba.

– É, talvez.

– Você vai postar essa conversa no blog, meu bem?

– Sim. Não vejo sentido em deixá-la apenas aqui. É como se arrumar na frente do espelho quando você não vai sair de casa. É hipocrisia dizer que eu só escrevo para você. Se você é meu alter ego, então o ego eu carrego na ponta da caneta.

– Você escreve para se encontrar.

– Sim. Mas no fundo a gente sempre deseja que mais alguém nos encontre. E além disso, você não é a porra de um diário pra guardar lamúrias. O que cai aí vira literatura mais cedo ou mais tarde.

– É verdade.

– Aliás, acho que por mim toda lamúria devia morrer numa mesa de bar ou virar literatura. Imagina se aquelas indiretas do Facebook fossem tão bem aproveitadas assim? Acho que eu vou lançar um movimento.

– Não ia dar certo. Seria má literatura. Só chororô. E nem todos têm sua habilidade com as palavras.

– Haha, desse jeito meu ego não vai caber nas suas folhas.

– Desculpe. Haha. Mas voltando… acha que alguém vai ler o post até o fim?

– Eu não sei. Acredito que alguns vão, sim. Mas isso é a cereja do bolo. O que realmente importa é que depois de conversar com você eu sempre me sinto melhor. Uma pena que este bem-estar dure tão pouco.

– Não se preocupe. Sempre que precisar eu estou aqui na sua cabeceira. Você sabe.

– Eu sei. Obrigado, meu querido. Agora vou dormir.

– Tudo bem. Boa noite.

– Boa noite. Durma bem.

Ilustra: Simon Rankin via Compfight cc

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2 Comments

  1. “Eu sou você por escrito. Sou seu reflexo num espelho de papel. Seu alter ego. Conheço sua força e suas fraquezas, os anjos e os demônios. Mas se não pode me largar, por que então não fica apenas comigo?”

    Uau!

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5065

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.