
Eram mais-ou-menos três da manhã quando eu desisti de vez de tentar dormir. Foi uma daquelas noites em que a cabeça tá tão carregada com problemas insolúveis e diálogos ainda por vir que, quando você nota, passou horas rolando de um lado pro outro na cama. Bate aquele desconforto, parece que se você não levantar e arrumar tudo de volta, jamais vai conseguir dormir de verdade: a roupa tá toda torta em você, o lençol tá saindo do colchão, o travesseiro não encaixa no pescoço de jeito nenhum. Pra piorar, no momento em que eu cheguei mais perto de quase dormir, acordei com um acidente de carro lá embaixo e passei a me concentrar ainda mais nos barulhos de ambulância e burburinho dos curiosos – não chamo de transeunte porque transeunte às três da manhã é um conceito complicado.
Em resumo, não tava dando mesmo.
Desci os três andares pela escada de incêndio enquanto fumava um cigarro. Eu poderia esperar para acender lá fora, mas gosto muito dessa ironia de fumar numa escada que supostamente deveria ser contra fumaça e coisas relacionadas ao fogo, em geral. Esse foi meu maior delito naquele dia, acho. Pior do que o papel de bala que eu joguei no chão por ter errado o arremesso em direção à lixeira e que não catei por pura preguiça. Tive medo de ser abordado pelo seu Luiz, o porteiro da noite, então terminei o cigarro no escuro mesmo e só depois saí. Seu Luiz tem um bigodão que contorna a boca, deixando ele sempre com aquela expressão que é o contrário do sorriso. Não sei o nome dessa expressão. Mas, apesar disso, ele é um cara simpático.
Tava calor pra cacete lá fora.
Cheguei suando na frente do prédio. O seu Luiz tava longe da portaria, era um dos curiosos que foram checar a batida. Diz que a moça do carro branco desviou de um cachorro que apareceu no meio do cruzamento e iria bater no carro cinza mas conseguiu desviar a tempo, só que a motorista do carro cinza era uma velhinha que se desesperou e virou pro outro lado e, no fim das contas, cada uma bateu num poste de lados opostos da rua. A moça parece que tinha quebrado o braço esquerdo e a senhora tava bem, só um pouco transtornada com a situação toda. Ligaram pro filho dela. Perguntei pro seu Luiz se o cachorro se machucou e ele disse que não, que o cachorro tava bem. “Tá ali, ó” ele falou, e, pro meu espanto, era o Paçoca, um vira-lata que mora na marquise do prédio da frente. Em seguida fiquei aliviado porque ele tava bem mesmo e abanou o rabo quando me viu. Ainda bem: o Paçoca é simpático demais pra morrer num acidente bobo desses. Me despedi do seu Luiz e do Paçoca e fui até o posto vinte-e-quatro-horas porque meu cigarro tava acabando e a ideia de um passeio curto me pareceu atraente.
No meio do caminho eu tropecei.
Com o pé esquerdo eu pisei e com o direito chutei uma pedra solta da calçada e, quando vi, tava no chão. Caí num gramadinho bem cuidado de um prédio novo, recém-povoado. Dei uma risada curta de constrangimento e em seguida me peguei rindo um pouco mais quando pensei que eram três-e-tanto da manhã e que não havia por que estar constrangido. Relaxei um pouco e resolvi ficar deitado mais um tempo ali porque tava bem calor e a graminha tava refrescante. Senti que aquele pedaço de natureza era mais confortável do que a minha cama e isso me fez pensar em por que é que a gente vive enclausurado meio à toa já que a natureza é tão agradável. Mas aí eu lembrei de uma vez que pisei no cocô do Paçoca e meu apartamento inteiro ficou fedendo. Pensei em cocôs, no frio, em insetos que picam e humanos mal-intencionados, e achei que era melhor mesmo viver fechadinho. Só que a graminha tava boa demais. Cogitei dormir por ali, só por uma noite, mas teria que acordar cedo por causa do sol e dos vizinhos do prédio. Não queria ser confundido com um mendigo ou passar por louco. Levantei, fui até o posto, comi um salgado, tomei uma Pepsi, comprei um maço de cigarro e uma caixa superfaturada de cerveja para o resto da noite.
Eu não ia mesmo conseguir dormir se não fosse lá fora, naquela graminha.
Rômulo Candal
Fotografia: Ulisses Candal Sato
Que velhinha baladeira, passeando por aí às 3 da manhã!
Muito massa.
oH Gosh!!!! Cada vez melhor…gostoso de ler.Parabéns menino.