No sereno 3 1008

 

Eram mais-ou-menos três da manhã quando eu desisti de vez de tentar dormir. Foi uma daquelas noites em que a cabeça tá tão carregada com problemas insolúveis e diálogos ainda por vir que, quando você nota, passou horas rolando de um lado pro outro na cama. Bate aquele desconforto, parece que se você não levantar e arrumar tudo de volta, jamais vai conseguir dormir de verdade: a roupa tá toda torta em você, o lençol tá saindo do colchão, o travesseiro não encaixa no pescoço de jeito nenhum. Pra piorar, no momento em que eu cheguei mais perto de quase dormir, acordei com um acidente de carro lá embaixo e passei a me concentrar ainda mais nos barulhos de ambulância e burburinho dos curiosos – não chamo de transeunte porque transeunte às três da manhã é um conceito complicado.

Em resumo, não tava dando mesmo.

 

Desci os três andares pela escada de incêndio enquanto fumava um cigarro. Eu poderia esperar para acender lá fora, mas gosto muito dessa ironia de fumar numa escada que supostamente deveria ser contra fumaça e coisas relacionadas ao fogo, em geral. Esse foi meu maior delito naquele dia, acho. Pior do que o papel de bala que eu joguei no chão por ter errado o arremesso em direção à lixeira e que não catei por pura preguiça. Tive medo de ser abordado pelo seu Luiz, o porteiro da noite, então terminei o cigarro no escuro mesmo e só depois saí. Seu Luiz tem um bigodão que contorna a boca, deixando ele sempre com aquela expressão que é o contrário do sorriso. Não sei o nome dessa expressão. Mas, apesar disso, ele é um cara simpático.

Tava calor pra cacete lá fora.

 

Cheguei suando na frente do prédio. O seu Luiz tava longe da portaria, era um dos curiosos que foram checar a batida. Diz que a moça do carro branco desviou de um cachorro que apareceu no meio do cruzamento e iria bater no carro cinza mas conseguiu desviar a tempo, só que a motorista do carro cinza era uma velhinha que se desesperou e virou pro outro lado e, no fim das contas, cada uma bateu num poste de lados opostos da rua. A moça parece que tinha quebrado o braço esquerdo e a senhora tava bem, só um pouco transtornada com a situação toda. Ligaram pro filho dela. Perguntei pro seu Luiz se o cachorro se machucou e ele disse que não, que o cachorro tava bem. “Tá ali, ó” ele falou, e, pro meu espanto, era o Paçoca, um vira-lata que mora na marquise do prédio da frente. Em seguida fiquei aliviado porque ele tava bem mesmo e abanou o rabo quando me viu. Ainda bem: o Paçoca é simpático demais pra morrer num acidente bobo desses. Me despedi do seu Luiz e do Paçoca e fui até o posto vinte-e-quatro-horas porque meu cigarro tava acabando e a ideia de um passeio curto me pareceu atraente.

No meio do caminho eu tropecei.

 

Com o pé esquerdo eu pisei e com o direito chutei uma pedra solta da calçada e, quando vi, tava no chão. Caí num gramadinho bem cuidado de um prédio novo, recém-povoado. Dei uma risada curta de constrangimento e em seguida me peguei rindo um pouco mais quando pensei que eram três-e-tanto da manhã e que não havia por que estar constrangido. Relaxei um pouco e resolvi ficar deitado mais um tempo ali porque tava bem calor e a graminha tava refrescante. Senti que aquele pedaço de natureza era mais confortável do que a minha cama e isso me fez pensar em por que é que a gente vive enclausurado meio à toa já que a natureza é tão agradável. Mas aí eu lembrei de uma vez que pisei no cocô do Paçoca e meu apartamento inteiro ficou fedendo. Pensei em cocôs, no frio, em insetos que picam e humanos mal-intencionados, e achei que era melhor mesmo viver fechadinho. Só que a graminha tava boa demais. Cogitei dormir por ali, só por uma noite, mas teria que acordar cedo por causa do sol e dos vizinhos do prédio. Não queria ser confundido com um mendigo ou passar por louco. Levantei, fui até o posto, comi um salgado, tomei uma Pepsi, comprei um maço de cigarro e uma caixa superfaturada de cerveja para o resto da noite.

Eu não ia mesmo conseguir dormir se não fosse lá fora, naquela graminha.
 

Rômulo Candal

Fotografia: Ulisses Candal Sato

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6417

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai