
Existe uma tensão no céu pra anunciar a tempestade que vem chegando. O dia escurece, as trovoadas brilham por todo o horizonte e ecoam com brutalidade que estremece o chão. Há areia por toda parte, e já é difícil não fechar os olhos, o que pra mim é sempre uma vantagem. Não se medita de olhos abertos, não é mesmo? O povo todo da vila já se recolheu e as senhoras acendem velas para Nossa Senhora dos Navegantes, mas não há muito a se fazer nestas situações. Alguns ainda dizem que aqui é o paraíso.
Ter a idade de um ancião não me beneficia em tantas coisas, como hoje é bastante claro. A vida me proporcionou o conhecimento em troca da disposição e força física, das horas de sono e dos meus amores. Muitos anos depois de ter constatado esta verdade incômoda, finalmente compreendi que o conhecimento chega em seu próprio tempo, que é diferente para cada pessoa. Alguns compreendem a vida cedo o bastante pra conseguir moldar o caminho da forma que for necessário enquanto há força e disposição, para que os grilhões da idade cheguem quando a bagagem da vida já não for mais tão pesada. Comigo não foi assim. Levei muitas décadas para aprender a me virar sozinho, a montar uma casa e cuidar do meu próprio barco. A saber a hora de jogar a rede, e principalmente quando recolher. Pouco tempo depois começaram as dores nas costas. Restou-me a meditação.
Ando em direção à última janela aberta, e avisto uma jangada no fundo do horizonte. É um dos nossos, não há dúvidas. Mas quem diabos estaria lá, com toda aquela tranquilidade enquanto o fim dos tempos toma corpo nos céus? Saio apressado carregando todas as minhas dores até a beira do mar, tentando gritar. É Francisco, e com certeza está adormecido. Como não tem a obrigação de trazer o peixe para a mesa de casa, é sempre levado pelo silêncio e cai no sono. Ou então fica rindo consigo mesmo enquanto relê um de seus gibis. Diz que sempre encontra uma piada nova, ou que entende a antiga de maneira diferente, e esta volta a ser engraçada. Não me entenda mal, Francisco não é uma má pessoa. Pelo contrário, tem um coração puro e o espírito otimista. Se estivesse mais disposto a fazer o que precisa, poderia ser o dono de todo o litoral, mas sempre acaba adormecendo ou relendo algum de seus gibis.
Grito seu nome repetidamente em vão. Ele não me ouve, e acho que não teria ouvido nem que estivesse a dez metros de mim. Não há ninguém por perto. Somos eu, ele, as dores nas costas e o apocalipse. Não há tempo para pensar, e faço o que qualquer homem da vila teria feito: arrasto um dos barcos até a água e saio navegando rumo ao nosso fim, que fica mais claro a cada relâmpago.
Meus braços já estão completamente caídos e ainda falta mais da metade do caminho. Não há força suficiente para me levar até lá, e muito menos para nos trazer de volta à terra. Resta-me agir como as mães desesperadas e gritar seu nome, na última da esperança de que pelo menos um de nós consiga retornar ao lar em vida. É inútil, ele não me ouve. Me deixo cair de joelhos na pequena embarcação, e fecho os olhos pedindo a ajuda de Nossa Senhora, que me tirou dos mares por algum motivo que desconheço, que tire também aquele rapaz que ainda tem muitas ondas pela frente. Antes que termine minha pequena reza, ouço um novo trovão, o mais alto até agora. Dou um salto de susto, e vejo que Francisco também ouviu. Levanta assustado, desperto do sonho para cair no pesadelo da vida. Ele me vê acenando ao longe e parece se desesperar. Não é hora pra isso, Francisco. Desespero é para quem tem tempo. Reme, reme, reme! Venha para a terra, ainda há muito a se fazer. Reme, Francisco. Só você pode se salvar desta tempestade. Eu já não tenho mais forças. Eu já não tenho mais tempo. Só resta você.
André Petrini
Foto: Brent Pearson / cc