Desculpas a Tigrinho 0 793

Fazer o bem e sermos justos são confortos que buscamos dia após dia, ainda que forjadamente. E foi assim que naquela manhã de sábado saí de casa para fazer justiça com Tigrinho.

Uma gata dessas vadias, sem dono nem canto, fez duma churrasqueira abandonada seu ninho e deu à luz quatro gatinhos. Um branco, um amarelo, um siamês e Tigrinho, cinza malhado com uma mancha branca entre os olhos verdes como o vento do mar.

Trago ainda hoje a lembrança de que todos eram machos porque aos onze de idade dificilmente temos a destreza de diferenciar o sexo dos filhotes de gatos. Podia tratar tudo como fêmeas? Podia. Mas não foi o que aconteceu. Tigrinho, pra mim, tinha três irmãos.

A mãe se foi com alguma noite, o branco morreu, o siamês sumiu. Ficaram apenas Tigrinho e amarelo.

Amarelo era o tipo ideal de filhote. Dos que ronronam até dormir em qualquer posição que os colocarmos. Era chegar na churrasqueira e ele já miava a se esfregar no que quer de mim que chegasse ao seu alcance.

Tigrinho não. Era diferente e ficava sempre acuado num canto com seus olhos verdes enormes, pronto para se defender até a morte. Eu era inimigo. Uma ameaça.

Não suportei.

Eu só queria dar um carinho que a gata mãe já não lhe daria.

Das poucas vezes que consegui encostar em Tigrinho, fui correspondido com arranhões e mordidas. Me doía a vida não poder afagar aquele pequenino tão abandonado pelo mundo.

Foi assim, dia a dia, durante uma semana: amarelo se fundia em mim e Tigrinho negava meu carinho.

Todos os dias antes de dormir eu olhava para o vazio em mim e pensava nos dois solitários naquela churrasqueira abandonada. Viviam da companhia um do outro e do leite que eu os levava todos os dias.

Naquela sexta eu tive a conclusão de que seria crueldade deixar que crescessem para sofrer em um mundo que lhes esmagaria em alguma esquina.

A vida é cruel com os solitários. Não existe amor para quem não sabe amar. E o amor nunca é o bastante para quem ama demais. Tigrinho e amarelo estavam fadados a uma vida de dores. Eu tinha que agir.

E foi assim que naquela manhã de sábado saí de casa para fazer justiça com Tigrinho.

Acordei cedo e fui até a churrasqueira abandonada. Lá estavam os sobreviventes da ninhada invisível.

O leve estralo das folhas secas a quebrarem sob meus pés e amarelo já começa a miar, se espreguiçando como fosse partir ao meio. Tigrinho apenas senta e se prepara para um possível confronto. Hoje penso que ele sempre soube que este momento chegaria.

Peguei amarelo no colo e, ato contínuo, ele começa a vasculhar minha camiseta, como buscasse um peito que o alimentasse. Tigrinho permanecia imóvel.

Coloco amarelo em uma caixa de papelão ao lado da churrasqueira e ele mia. Parece sofrer com a primeira solidão longe do irmão. Como quem se rende, Tigrinho mia e vem à borda da churrasqueira. Pede companhia.

Nunca somos tão fortes quanto nossas presas insistem provar ao mundo.

Pela primeira vez consigo ter Tigrinho ao meu colo. Pela primeira vez o sinto ronronar. Um ruído tímido. Falhava como gaguejasse. Como fingisse.

Ser o único conhecedor daqueles filhotes me tornava responsável por aqueles destinos. Por isso decidi: só a morte lhes salvaria das dores da solidão. Do abandono.

Coloquei Tigrinho na caixa com amarelo e fechei. O silêncio disputava espaço com aqueles miados um tanto inseguros, outro tanto desesperados.

Com a caixa pulei o muro ao lado da churrasqueira e, no mato de fora, encontrei a pedra branca para a sentença final.

Tigrinho voltara a ser o indomável. Ameaçava com suas pequenas presas finas como agulhas. Parecia proteger amarelo.

Tentei acalmá-lo, pegar no colo novamente e fui arranhado e o sangue brotou do dorso de minha mão. Aquilo me cegou.

Peguei Tigrinho pelo pescoço e o joguei para fora da caixa. Caiu no chão arrepiado, pronto mais para o ataque do que para a defesa. Um gato disposto à morte.

Sem hesitar, como sentisse o gosto do sangue que escorria em minha mão, arremessei a pedra branca que amassou a pequena cabeça de Tigrinho. Uma cabecinha frágil. Afundou na terra. Um fio de sangue escorria do delicado nariz de Tigrinho. Pequenos espasmos atravessavam o corpinho esticado no chão.

O sangue inevitavelmente esfriava e aos poucos as pulgas se ouriçavam. Abandonavam o corpo que anunciava: a festa acabou.

A noção de justiça me embriagava. Tigrinho não sofreria com as maldades do mundo. Ninguém seria capaz de lhe agredir por não saber amar.

Uma embriaguez que durou tempo suficiente para amarelo sumir em silêncio. Sumiu no vazio daquele sábado. Nunca mais o vi.

A caixa estava vazia.

Me culpava. Tinha certeza de que levaria uma vida de dores por amar demais.

Sequer um funeral fiz. Logo aos onze de idade, quando somos tão suscetíveis a rituais e celebrações. Apenas joguei a caixa de papelão vazia por cima daquele corpo pequenininho e fui embora sem jamais voltar a pular aquele muro.

Só hoje, vinte e tantos anos depois daquela pedra ensanguentada é que percebo a injustiça que cometi com Tigrinho. Não cabia a mim sentir suas dores e amores.

Tigrinho teria uma vida inteira para descobrir as reações do mundo.

Não chegou a ser feliz. Não chegou a sofrer. Sequer conheceu o mundo além daquela churrasqueira.

Morreu com a certeza de que o homem é mau. Talvez tivesse tido a oportunidade de reverter essa opinião em vida.

Estas linhas, Tigrinho, seriam para você. Minha dor é sua. Meu amor é seu. Mas, sobretudo, minhas dúvidas. Pois minhas certezas nunca mais puderam durar o tempo de uma vida, como durou a daquele sábado, quando saí de casa para fazer justiça contigo.

Curitiba, 21 de agosto de 2014.

por Rafael.

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Escala de Baumé 0 5002

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Vida comum parte 1 0 5165

Vida comum parte 1

Véspera de feriado, antes da meia-noite e eu já com meia garrafa de conhaque na mente. Curtia me derreter no gole, de dose, de lata, de garrafa, de todo jeito. No feriado rolou um churrascão que nem lembro se comi, dropei umas caipiras antes de acender o fogo e fiquei mais preocupado com a temperatura das garrafas que da carne. Sábado a ressaca com a mão pesada, tava batendo forte, contra-ataquei com uns latão, encostado nos fundos do posto com a rapeize, só flagrando os doidinho tirando uns racha de Parati, Chevette e Gol Chaleira. Domingo rolou rave na região metropolitana, no meio do mato, não virava ir de bonde, botei uma gasolina na Bizz e meti o pé; duas carteiras de Minister depois já tinha descido whisky com energético, vodka com suco, vários ampola, um doce e umas água colorida que os parceiro botaram, sei lá qual fita, puta gosto de remédio. Bati a nave antes da hora, cheguei em Grayskull sem nem aproveitar a viagem, ensaiava falar e não saia voz, tava tenso, me mordendo, fiquei nervoso: deu bad. Tentei endireitar a caminhada tomando umas águas, mas não rolou, a conta não batia, os dentes rangendo, coração agitado querendo se mudar do peito. Precisava voltar pra minha goma, tomar um banho, talvez dois, sei lá, só precisava vazar, montei na moto e fui. Tava com dois IPVA atrasados, cabreiro de cair numa blitz, e se soprasse um bafômetro explodia a máquina – certeza. Queria chegar logo, entrei no modo Valentino Rossi e corri a milhão, como se fosse fuga. Foi aí que deu ruim no piloto automático, se pá que dormi em cima do jato, lembro só de uns clarão, uns flash. Vi o céu por baixo, deitado no asfalto, sei lá qual fita, tudo nublado, que dia bosta. Me liguei e já tava todo remendado no hospital, numa sala com umas vinte cabeça, todo mundo fudido, uns mais outros menos. Eu? Era cabeça de chave do grupo dos desgraçados: com a lata do frankstein, olho roxo, cara inchada, nariz quebrado, uns ponto na testa. Trinquei uma costela e quebrei outras duas, a clavícula rachou e a mão tava na carne viva. O médico foi desenrolando essa lista aí e eu aceitando na moral, os pensamentos embaçados, cheio de analgésico, todo bagunçado de dor. Aí teve uma mão que ele deu uma pausa, ficou mais bolado e mandou A real: disse que eu sofri um choque cabuloso no quadril, perdi mais de 80% do fígado, que num tinha como dizer o tamanho real do estrago, mais uma fita era certa, nunca mais ia poder beber, se tomar meia lata que seja, posso encomendar o caixão. Acordei umas três vezes crente que tava tendo um pesadelo, foquei umas horas que tava numa brisa errada de doce. Mas não. A vida é uma viagem desgraçada.