
Fazer o bem e sermos justos são confortos que buscamos dia após dia, ainda que forjadamente. E foi assim que naquela manhã de sábado saí de casa para fazer justiça com Tigrinho.
Uma gata dessas vadias, sem dono nem canto, fez duma churrasqueira abandonada seu ninho e deu à luz quatro gatinhos. Um branco, um amarelo, um siamês e Tigrinho, cinza malhado com uma mancha branca entre os olhos verdes como o vento do mar.
Trago ainda hoje a lembrança de que todos eram machos porque aos onze de idade dificilmente temos a destreza de diferenciar o sexo dos filhotes de gatos. Podia tratar tudo como fêmeas? Podia. Mas não foi o que aconteceu. Tigrinho, pra mim, tinha três irmãos.
A mãe se foi com alguma noite, o branco morreu, o siamês sumiu. Ficaram apenas Tigrinho e amarelo.
Amarelo era o tipo ideal de filhote. Dos que ronronam até dormir em qualquer posição que os colocarmos. Era chegar na churrasqueira e ele já miava a se esfregar no que quer de mim que chegasse ao seu alcance.
Tigrinho não. Era diferente e ficava sempre acuado num canto com seus olhos verdes enormes, pronto para se defender até a morte. Eu era inimigo. Uma ameaça.
Não suportei.
Eu só queria dar um carinho que a gata mãe já não lhe daria.
Das poucas vezes que consegui encostar em Tigrinho, fui correspondido com arranhões e mordidas. Me doía a vida não poder afagar aquele pequenino tão abandonado pelo mundo.
Foi assim, dia a dia, durante uma semana: amarelo se fundia em mim e Tigrinho negava meu carinho.
Todos os dias antes de dormir eu olhava para o vazio em mim e pensava nos dois solitários naquela churrasqueira abandonada. Viviam da companhia um do outro e do leite que eu os levava todos os dias.
Naquela sexta eu tive a conclusão de que seria crueldade deixar que crescessem para sofrer em um mundo que lhes esmagaria em alguma esquina.
A vida é cruel com os solitários. Não existe amor para quem não sabe amar. E o amor nunca é o bastante para quem ama demais. Tigrinho e amarelo estavam fadados a uma vida de dores. Eu tinha que agir.
E foi assim que naquela manhã de sábado saí de casa para fazer justiça com Tigrinho.
Acordei cedo e fui até a churrasqueira abandonada. Lá estavam os sobreviventes da ninhada invisível.
O leve estralo das folhas secas a quebrarem sob meus pés e amarelo já começa a miar, se espreguiçando como fosse partir ao meio. Tigrinho apenas senta e se prepara para um possível confronto. Hoje penso que ele sempre soube que este momento chegaria.
Peguei amarelo no colo e, ato contínuo, ele começa a vasculhar minha camiseta, como buscasse um peito que o alimentasse. Tigrinho permanecia imóvel.
Coloco amarelo em uma caixa de papelão ao lado da churrasqueira e ele mia. Parece sofrer com a primeira solidão longe do irmão. Como quem se rende, Tigrinho mia e vem à borda da churrasqueira. Pede companhia.
Nunca somos tão fortes quanto nossas presas insistem provar ao mundo.
Pela primeira vez consigo ter Tigrinho ao meu colo. Pela primeira vez o sinto ronronar. Um ruído tímido. Falhava como gaguejasse. Como fingisse.
Ser o único conhecedor daqueles filhotes me tornava responsável por aqueles destinos. Por isso decidi: só a morte lhes salvaria das dores da solidão. Do abandono.
Coloquei Tigrinho na caixa com amarelo e fechei. O silêncio disputava espaço com aqueles miados um tanto inseguros, outro tanto desesperados.
Com a caixa pulei o muro ao lado da churrasqueira e, no mato de fora, encontrei a pedra branca para a sentença final.
Tigrinho voltara a ser o indomável. Ameaçava com suas pequenas presas finas como agulhas. Parecia proteger amarelo.
Tentei acalmá-lo, pegar no colo novamente e fui arranhado e o sangue brotou do dorso de minha mão. Aquilo me cegou.
Peguei Tigrinho pelo pescoço e o joguei para fora da caixa. Caiu no chão arrepiado, pronto mais para o ataque do que para a defesa. Um gato disposto à morte.
Sem hesitar, como sentisse o gosto do sangue que escorria em minha mão, arremessei a pedra branca que amassou a pequena cabeça de Tigrinho. Uma cabecinha frágil. Afundou na terra. Um fio de sangue escorria do delicado nariz de Tigrinho. Pequenos espasmos atravessavam o corpinho esticado no chão.
O sangue inevitavelmente esfriava e aos poucos as pulgas se ouriçavam. Abandonavam o corpo que anunciava: a festa acabou.
A noção de justiça me embriagava. Tigrinho não sofreria com as maldades do mundo. Ninguém seria capaz de lhe agredir por não saber amar.
Uma embriaguez que durou tempo suficiente para amarelo sumir em silêncio. Sumiu no vazio daquele sábado. Nunca mais o vi.
A caixa estava vazia.
Me culpava. Tinha certeza de que levaria uma vida de dores por amar demais.
Sequer um funeral fiz. Logo aos onze de idade, quando somos tão suscetíveis a rituais e celebrações. Apenas joguei a caixa de papelão vazia por cima daquele corpo pequenininho e fui embora sem jamais voltar a pular aquele muro.
Só hoje, vinte e tantos anos depois daquela pedra ensanguentada é que percebo a injustiça que cometi com Tigrinho. Não cabia a mim sentir suas dores e amores.
Tigrinho teria uma vida inteira para descobrir as reações do mundo.
Não chegou a ser feliz. Não chegou a sofrer. Sequer conheceu o mundo além daquela churrasqueira.
Morreu com a certeza de que o homem é mau. Talvez tivesse tido a oportunidade de reverter essa opinião em vida.
Estas linhas, Tigrinho, seriam para você. Minha dor é sua. Meu amor é seu. Mas, sobretudo, minhas dúvidas. Pois minhas certezas nunca mais puderam durar o tempo de uma vida, como durou a daquele sábado, quando saí de casa para fazer justiça contigo.
Curitiba, 21 de agosto de 2014.
por Rafael.