Sábado 3 1224

Ônibus é foda, né, cara – ele começou.

 

Está segurando uma criança no colo, uma menina que tem no máximo dois anos, e que dorme como dormem as crianças. Oi?, perguntei. Ônibus é foda, porque é só você precisar, que nunca vem. Pois é. Começamos esta conversa. Eu não tinha nada para fazer, e ele também não. Ainda mais foda porque tenho que levar essa coisinha, e apontou com a cabeça para o bebê, pra casa da filha da puta da mãe dela. Eita. Tenho que ir até o Capão Raso agora de Interbairros pra levar ela pra casa da louca. Vocês são separados? Aham. Faz um ano e pouco, bem pouco depois que ela nasceu a gente separou. Entendi. Mulher é foda, né, cara? E é, né. Mas é bom. Ah, é bom, é bom, mas é foda. imagina: a louca quer que eu leve ela pra casa dela agora, até as três, só pra foder com o meu sabadão. E amanhã é dia dos pais, cara! Vou passar sem essa aqui, e apontou novamente com a cabeça, que é a única coisa importante da minha vida, mas eu levo porque não quero me complicar com juiz, né? Então eu levo, tudo bem. Mas é ruim. Peguei ela hoje oito da manhã, e a minha ex-mulher queria que eu levasse ela de volta de táxi! Imagina! Não é porque eu não quero dar conforto, mas é que é longe, né? Sim, o Capão Raso é do outro lado da cidade. Pois é! Imagina! Uma vez eu fui pra lá de táxi, e deu R$ 60. Caramba, é caro mesmo. Não sabia que dava esse tanto daqui até lá. É, né. mas às vezes o cara deu volta e eu nem percebi, porque não conheço nada praquele lado. Foda, né, cara. E o que que é o negócio do juiz que você comentou? Daqui uns vinte dias tem audiência por causa da guarda dela, e eu vou até aceitar o que a mãe dela pedir, entendeu?, mas vou pedir umas coisas também, que do jeito que tá não dá. Só tô vendo ela de quinze em quinze dias, sabe? Tô dando quatrocentão de pensão, mais o plano de saúde, que dá mais uns cento e pouquinho, mas tá foda ver ela tão pouco. Se der pra ver ela todo fim de semana eu prefiro. Tô mudando de emprego, vou fechar umas contas, e aí consigo dar mais pra ela, mas preciso de uns quatro meses pra deixar tudo acertado. Só sei que não dá pra passar tanto tempo sem essa coisa aqui. Pois é, eu não tenho filho, mas acredito que deve ser difícil mesmo. A menina acordou, olhou bem para a minha cara, olhou para a cara do pai, e deitou de novo no colo dele. Que linda que ela é. Eu te falei! Linda mesmo, né? É mesmo. Mas acho que a mãe dela quer voltar comigo, esse que é o negócio. Ah, é? Eu acho. Ela se faz toda, briga, me xinga no telefone, mas a gente nem brigou muito quando se separou, sabe? Eu não tava entendendo porque que ela briga tanto comigo, me humilha, fala mal pros nossos amigos, essa coisa toda. Eu não entendia, mas acho que é porque ela quer voltar comigo. Sério? Pois é. Quem desdenha quer comprar, né? Deve ser. E você, quer voltar com ela? Ah, eu também falo desse jeito, mas é só porque eu fico louco por causa da minha filha. Eu gosto dela. Legal, cara. Talvez vocês voltem mesmo, né? Mas não precisa ofender ela desse jeito. Eu sei, eu sei. Só tô falando pra você, porque daqui a pouco a gente nunca mais vai se ver, né? Talvez não mesmo, mas vai saber. Você pega a bolsa com as coisas dela aqui do meu lado? Não consigo esticar a mão pro ônibus, pra segurar ela e pra pegar a bolsa ao mesmo tempo. Ri sincero. Claro, claro, respondo, rindo junto.

 

Entramos no ônibus. Deixo sua bolsa no banco ao lado do que ele senta, e a menina faz um movimento preguiçoso para trocar o ombro do pai em que está deitada. O motorista sorri ao vê-la, tal como a cobradora, que tem cara de mãe.

 

Marco Antonio Santos

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Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6518

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai