Um buraco em minha vida 0 811

Eu moro aqui desde que nasci, e adorava a nossa casa. Ela era pequenininha, mas meu pai dizia que só pra nós três já está bom. Antes tinha o Binho, né? Mas ele acabou caindo no buraco, e agora deve estar lá na China. O Maurício, ali da casa do lado, falou que ele já virou espetinho porque na China eles comem carne de gato. A minha mãe disse que é mentira, e eu nem tinha acreditado mesmo, porque o Binho não deixava ninguém chegar perto dele. Vai ver ele sumiu de novo, e aparece daqui uns dias com fome e o pêlo todo sujo, igual àquela vez. Eu queria mesmo é que ele voltasse, porque eu gosto de ficar sentado aqui na areia olhando pro mar junto com ele, ainda mais agora que ele está até aprendendo a não me arranhar. Tirando quando eu pego no rabo dele, daí não tem jeito. Mas o problema é que eu queria levar ele no Dia do Animal da escola, e agora não tenho mais nada. Talvez eu leve um peixe que meu pai trouxer do mar, mas eu queria mesmo o Binho.

O buraco? Ah, ele apareceu do nada. Eu acho que foi o Binho que cavou ele, porque ele estava sempre fuçando na areia. Daí o buraco foi aumentado, aumentando, aumentando, até ficar maior do que a casa. Fez um barulhão quando tudo aconteceu, deu pra ouvir de longe. Ainda bem que a gente tinha saído, senão ia estar todo mundo caindo até agora. Ou então a gente ia chegar naquela bola quente que tem no meio do planeta, sabe? Eu não lembro o nome, mas não fala pra profe Ana, tá? Ixi, vai aparecer na TV? Tomara que ela não veja! Não sei se ela tem TV em casa. Eu ouvi dizer que lá na cidade todas as casas têm uma TV, às vezes até duas! Mas aqui na vila só tem a do bar do Seu João, onde a gente se junta pra assistir aos jogos do Palmeiras.

Ah, foi triste né. Porque quando a gente chegou, tava todo mundo em volta, olhando pra ver o que tinha acontecido, e a casa já estava só pela metade. Só ficou a porta da entrada e o sofá da sala. Dá pra ver ele daqui, ó.

Como eu tô agora? Não sei. Eu queria minha casa, né? Queria poder ficar na rede brincando com o Binho, vendo minha mãe fazer artesanato com as mulheres, e sentindo o cheirinho do pirão na panela. Deu até fome. Antes eu reclamava que a rede tava rasgando ou que o pirão demorava pra ficar pronto, mas agora não tem mais nem a casa, nem a rede, nem o pirão. Só eu, a mãe, o pai e o barco. Às vezes a gente reclama que as coisas estão ruins, e nem percebe o quanto elas estão boas, né?

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Escala de Baumé 0 5002

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Chegada 0 6519

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, prepare a casa
e meu coração pulou afora
bateu amor por toda a cidade

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Ela está vindo!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, mas levo ainda um pouquinho
e antes de te ter em meus braços
já tenho em todos os sonhos do mundo

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Minha menina vai chegar!

hoje recebi sua mensagem
Estou chegando, já não falta mais tanto
e prevendo as noites com você,
me vejo em claro sonhando

conto os dias, conto as semanas
conto para todos
Vou ser pai