Coletivo 0 939

O dia desaparecia e a “hora da fraqueza” (ou seria hora da loucuragem?), descrita por Camus, se aproximava. O bairro estava sem energia. Max andou algumas quadras e viu guardas de trânsito trabalhando em função dos semáforos desligados. Queria ler um pouco e em casa seria impossível, precisava sair, melhor seria a solidão de um local público com carros passando sem que se dessem conta dele, talvez numa praça que ainda estivesse iluminada. No limiar da subida viu a cidade ao fundo.

Ficou observando a noite e percebeu que as nuvens logo se tornariam vermelhas. Mas talvez seria perigoso ficar lendo na rua, perdido, alvo fácil para pequenos ladrões viciados, com facas sujas e enferrujadas. Talvez um ou outro de revólver 22 velho na cinta.

Viu a estação tubo que estava à sua direita; brilhava como uma grossa lâmpada fluorescente. Os pontos escuros no interior eram passageiros em espera. Começou a andar na direção à estação, poderia pegar um coletivo e ler por longo trajeto sem rumo, sentado a sós com o pequeno livro. Ao invés de pegar um ônibus expresso na estação, pensou em tomar um de linha convencional, no ponto do outro lado da rua; estaria quase vazio e com certeza haveria onde sentar.

Viu que o ônibus verde vinha a certa distância. Correu o mais rápido que pôde e fez sinais com os braços. Conseguiu chegar ao ponto um pouco antes e aguardou, mas o coletivo não parou, apenas tinha diminuído a velocidade. Max foi invadido por um ódio súbito, descontrolado (mas da onde vinha isso? ninguém até hoje sabe, foi violência tão gratuita!).

Golpeou a lataria do ônibus com os punhos cerrados e gritou como se grita a um cavalo: OUOUOUOUOUOU!!!! O condutor se obrigou a parar. As pancadas provocaram um barulho intenso no interior do veículo. Max correu cerca de dez metros até a porta e foi recebido pelo ar nervoso do motorista. “Por que não deu sinal, ôôô maluco!?”, gritou condutor com a cabeça completamente vermelha (as batidas na lataria ainda ecoavam dentro dela). “Acorda imbecil! Não acenei várias vezes? Que mais queria que eu fizesse?!” disparou Max. Então o motorista disse uma série de coisas ininteligíveis, intercaladas por palavrões que ficavam marcados no ar.

Max não entendia mais nada, não ouvia mais nada, apenas sons surdos na porta de cada ouvido (zumbidos que afloravam em cada choque de nervos). “VAI SE FODER FILHO DA PUTA! Acorde e dirija seu merda, seu filho da puta!”, disse quase sem perceber que palavras saiam da boca. “Dirija e pronto!”, exclamou por último.

O motorista calou-se, admirado com a violência verbal. Max passou a catraca sob o olhar fumegante do cobrador. A veia do lado direito da testa pulsava a ponto de quase romper. Alguns passos à frente, ouviu cobrador e motorista o xingando. Leu os lábios do condutor ao dizer para o cobrador que o avisasse, apertando duas vezes a campainha, quando Max fosse descer. No espelho frontal, acima do para-brisa, viu o motorista piscar e o colega assentir com a cabeça em seguida. Ficou claro que ia ter troco.

Era chegada a hora da loucura, uma única hora entre 24. A maioria dos que sofrem diariamente desta hora maldita acabam como heróis violentos (que salvam o dia, mas matam algumas criancinhas inocentes no caminho), ou são condenados a ir para um hospício; talvez morram queimados criminosamente, amarrados na cama de um quarto perto da enfermaria. Num dos 200 e poucos quartos de um hospício metropolitano.

A hora chegou e não era pessoal. Nada contra as vítimas em si. Era mais uma daquelas situações classificadas de forma simplista como “hora e lugar errado”, (e tem coisa mais ridícula?).

A mente de Max foi sugada por um buraco negro. As batidas surdas em seus ouvidos inundavam a cabeça de uma névoa densa, mas, paradoxalmente, a visão do jovem maníaco ficou clara, via cada detalhe à frente com precisão inacreditável: a luz azulada do interior da nave, em contraste com a escuridão do bairro sem brilho, salientava a divisão das formas no espaço e o rapaz teve seu momento de iluminação.

O crime
Impulsionado por força desconhecida, Max, louco, sacou a caneta esferográfica de ponta fina que tinha no bolso (carregava por costume; fazia anotações nas bordas dos livros ou sublinhava citações). Com um único golpe, cravou metade da haste plástica no ouvido esquerdo do cobrador, que ainda olhava para o espelho a fechar seu conchavo com o motorista.

O homem nem teve tempo de gritar e Max arrancou o objeto para em seguida golpear o olho direito do cobrador, causando duas perfurações na cabeça, uma de cada lado do cérebro. Pulou a catraca de volta e começou a espancar o motorista que estava preso no cinto de segurança: era uma presa fácil e o caçador estava em fúria. A partir daí, nada via a não ser o sangue e queria mais e mais, parecia uma brincadeira. Agrediu o homem repetidas vezes na região da cabeça; deu impulso para trás e começou a pisoteá-lo. Colocou todo o peso do corpo no calcanhar para atingi-lo na região do tórax e do abdômen.

O ônibus, que ainda estava em movimento, perdeu a direção e bateu em uma árvore. Foi amortecido antes da colisão pelo barranco de terra do canteiro central da avenida. O motorista estava quase inconsciente e o motor do veículo ainda fazia barulho.

Max pegou uma chave inglesa que estava no painel e bateu três vezes contra a face do motorista, abrindo um buraco profundo acima do nariz. O jovem ainda não havia caído na real. Olhou para os passageiros horrorizados, mas seu olho estava sem foco. As pupilas tão dilatadas que as órbitas pareciam estar completamente negras. Sujo de sangue, viu seu livro no chão com a capa manchada por completo. O suor escorria na testa e estava arrepiado, lábios brancos e rosto pálido, tal qual um morto no caixão esperando ser posto gaveta adentro. Parecia estar dentro de um sonho terrível. Perguntou a todos em voz alta, por duas vezes, quase gritando: “O que aconteceu aqui!?”. Enfim estava voltando a si, mas então caiu no chão desmaiado.

Por um minuto ninguém se mexeu dentro do ônibus; estavam em choque. Mas Max levantou-se inesperadamente. Agora tinha uma expressão de determinação no rosto e todos tremeram quando ele sorriu. Um meio sorriso, um sorriso escuro.

Lambeu os lábios, impulsionado pela impaciência, e apertou o botão que abria as portas para sair correndo na rua. Desapareceu em alguns segundos no bairro sem luz, antes mesmo que alguém conseguisse ligar para a emergência. Uns mais ao fundo do coletivo, nem sequer tinham entendido o que havia se passado naquele último instante e nenhuma das testemunhas mais a frente sabia quem era o assassino. Um desconhecido, sem qualquer tipo de identificação.

Mais tarde, Max foi classificado como “um jovem de aproximadamente um metro e setenta, pele clara, cabelos tingidos de vermelho, aparentando entre vinte e vinte e cinco anos. Uma mente doentia que agiu por motivo torpe, ou pior, sem motivo, a não ser os de uma pessoa perturbada. Provavelmente estava sob efeito de álcool ou drogas”. No dia seguinte houve protesto da classe dos motoristas e cobradores de ônibus da cidade, pedindo mais segurança. Max não foi encontrado.

por Jadson André.

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Escala de Baumé 0 4880

Já não se criam mais homens de barro, apesar de continuarmos nos esfarelando. É aceito que hoje somos compostos por água e ansiedade. De barro só os tijolos, com que se ergueram os muros de nossas casas e prisões. A ansiedade só cresce.

Na primeira vez em que fui visitar o Jaime na clínica ficamos em silêncio por quase uma hora, quinze anos de amizade nos poupam de certos diálogos dispendiosos. No momento de ir embora ouvi com clareza o que seus olhos me diziam, não podia abandoná-lo, e não o fiz. Na semana seguinte houve a necessidade de falar, de abraçar, de chorar; é difícil permanecer impassível quando seu colega de quarto é internado após tentar serrar os pulsos com um serrote, dessa vez era isso que seus olhos e braços me diziam. Os suicidas estão à procura de sua própria justiça, na qual a morte é a sentença final. O Jaime não era um suicida, ao menos não nos moldes convencionais, já que tomar uma garrafa de destilado por dia vinha se mostrando uma técnica efetiva para findar com sua vida. Seus sorrisos tornaram-se raros, pequenas ilhas de alívio no caos murado da instituição; os espaços cada vez menores, a alma tumultuada, a mente entulhada. Não sei o que tive mais medo de ver, se um surto ou a depressão profunda, um conforto mórbido me tomava ao vê-lo flutuar entre ambas hipóteses. Foi na décima terceira semana que decidimos que algo precisava ser feito.

Nunca concordei com essa internação, entendo-a, não é fácil para família alguma ter alguém fora de controle, mas não posso compactuar com isso. Lá fora o Jaime era a materialização da beleza na desordem, um furacão que arrasa um campo de rosas para se encher de cor, aqui ele não passa de um sopro, incapaz de espalhar as pétalas de um dente de leão. Onde esse ímpeto se perdeu? Na abstenção do álcool ou da vontade própria? Troquei minhas mágoas pela vergonha depois de descobrir o motivo de não ter sido ouvido em algumas visitas; certo dia trocaram o Jaime de quarto, sem consentimento algum ele foi amarrado em sua cama e transferido para outro cômodo, frio e com janelas menores. A crise de identidade se apossou dele, não se sentia mais um homem, era agora objeto. Não tinha mais nome, por isso não atendia quando o chamavam, tornou-se coisa, dessas que trocamos de lugar por mero paisagismo e descartamos quando causam problemas. Definitivamente, não existe amor sem empatia.

Uma hóstia podre e carcomida pelos vermes ainda é o corpo de cristo? Era a pergunta que me fazia todos os dias em que tinha que encarar um Jesus deteriorado na sala de espera da clínica. Dois mil anos com os pulsos pregados, quanto tempo mais era possível aguentar esse tipo de tortura? Na décima quarta semana cumpri com o combinado, depois que o Jaime voltou a ser alguém, a gente mergulhou num saudosismo afável, de quando éramos quem queríamos ser: bêbados que culpavam o álcool pelas próprias frustrações artísticas.

Pouco dormi na semana que antecedeu esse dia, nos momentos em que o cansaço venceu a angústia sonhei com prédios ruindo, maldito sonho que não me abandona. Deixei o carro embaixo da figueira de sempre, há quem diga que ela é a árvore da vida, também dizem que foi onde se deu o enforcamento de Judas Iscariotes. Minhas mãos suam, agora seria incapaz de dar um nó em qualquer corda. Como já me é habitual, encaro Jesus, com todas as minhas dúvidas.

Enfim chamam pelo meu nome. No caminho até o quarto o enfermeiro elogia minha decisão de trazer toddynho e trakinas para meu amigo, diz que nos últimos dias os internos passaram à pão e água, só meneio com a cabeça. É minha vez de engolir as palavras, sento em frente a ele e respondo com os olhos o seu questionamento. Trouxe? Estico a mão e lhe entrego, sinto medo, receio, vontade de me livrar logo disso e seguir em frente. Ele sorri nervosamente, a ansiedade lhe obriga a contrair seu maxilar, tomado pela dúvida, se espera o momento certo ou se entrega agora. Suo frio, quero ir embora, mas não consigo nem me levantar, nem virar o rosto, ele fura a superfície de alumínio com o canudinho e bebe tudo num gole só. Sorri com leveza, me abraça com calor, me pede pra voltar na semana seguinte. Vou embora me arrastando, as costas arqueadas carregam o peso de uma cruz, quantas mentiras conseguimos contar durante a vida?

Procuro no calendário onde foram parar os dias da semana que se foi, não há negociação, já é véspera de visita novamente. Encaro a prateleira do supermercado, água de coco ou suco de laranja? Nunca fui um bom alquimista, li dia desses que vão menos conservantes na água de coco, sei lá que diferença isso faz. A cena é cinematográfica, chego em casa e busco a sacola com meu kit, me sinto um coadjuvante de Trainspotting com uma seringa pontuda em mãos. Furo o fundo da caixinha de água de coco e retiro metade do líquido, a mão que segura a garrafa de vodka treme, encho novamente a seringa e preencho a embalagem usando o mesmo furo de antes, tapo a abertura com um pedaço milimétrico de durex. Torno a pegar a garrafa de vodka, a mão ainda tremendo, sirvo uma dose e bebo num gole só. Choro, por mim e por todos os bêbados que insistiram em criar descrença em seus queridos. Sóbrios ou não, permanecemos assistindo a ansiedade tomar conta.

Crédito da Imagem: Robert Mapplethorpe

Dai-me Amor 0 3148

Deus foi a primeira palavra que eu aprendi. Antes mesmo de aprender meu nome. Quando se é criança, os adultos tentam nos ensinar as coisas dos jeitos mais variados. Criança só aprende brincando. Minha mãe mandava eu pintar todos os “Deus” que eu achasse na Bíblia. Ela me disse que Deus sempre existiu e nunca nasceu. Perguntei como Ele se parecia. Ela disse que não sabia, pois a glória dEle é tão grande que era como olhar pro Sol. Tentei olhar pro Sol, ardeu.

Depois de pintar tudo, eu aprendi a palavra Jesus. Ela me disse que Jesus é a encarnação do amor, é quem criou todas as coisas. É filho de Deus com uma humana, Maria. Me disse que tem barba e cabelo grande. E que seu olhar muda e transforma escuridão em luz.

Mais tarde ela me falou pra pintar o “Espírito Santo” e disse que Ele não tem forma, corpo ou manifestação material. Já foi pomba no batismo de Jesus, mas também é descrito como o brilho da Glória de Deus. Ela me explicou que Deus se manifesta na trindade. E que eu podia falar com Ele(s) quando eu quisesse. Bastava orar e, é claro, com todo o respeito. E que quando eu orasse deveria confessar meus erros e pedir perdão. Deveria agradecer pelas dádivas e pela bênção da vida. Que deveria contar sobre meu dia, sobre meus medos, descobertas e felicidades. Foi assim que Jesus se tornou meu melhor amigo. Meu amigo imaginário. Meu Deus. Minha mãe me ensinou um bocado de coisas sobre a Bíblia, o céu e sobre como a vida nessa terra é passageira, é escola, é aprendizado, nada é por acaso, nada é destino. Tudo é providencial. Providência divina. Tudo de bom e tudo de ruim tem como propósito nos ensinar sobre Deus, e como Ele age em nossas vidas. Ela me contou que se eu deixasse, Ele poderia morar dentro do meu coração, e assim, o divino habitaria em mim. Disse também, que Jesus vai voltar pra levar os justos pro céu. Perguntei como eu fazia pra ir pro céu, ela me disse que imitando a Jesus, O aceitando como meu Deus e salvador, sua Graça me salvaria independente das obras. Me ensinou que só a religião dela era a correta e junto com essa religião muitas regrinhas, que eu nunca consegui seguir. Por muito tempo achei que por causa da parte que eu não cumpria, Deus não habitava em mim. Me senti perdida, vazia. Comecei a me odiar. Acelerar minha morte. A vida muitas vezes deixa de fazer sentido. Acontece que eu sou muito como Tomé, só acredito vendo. E como acreditar em alguém que eu só ouvi falar e que ninguém nunca viu? Com nove anos veio a primeira dúvida sobre a volta de Jesus. Junto com a dúvida veio a primeira vez que senti Deus falando comigo. Foi diferente de pensar. Foi quase como ouvir palavras que não foram pensadas. Eu ouvi: “Não desista, porque Eu não desisti de você”. Depois desse episódio nunca mais ouvi ele nos meus pensamentos, achei que era coisa de criança ter amigos imaginários, mas vira e mexe alguém usado por Ele me lembrava sobre não desistir de conhecê-Lo e procurá-Lo. E nessa eu vi que Ele não estava na religião. Não estava em uma igreja específica, não era o “não pode” tão popular. Compreendi o que significava Graça e aceitei a minha salvação. Aceitei a trindade e aceitei a minha mãe. Compreendi que amar nada tem haver com sexo ou paixão. Amor transcende toda essa metáfora feita de carbono que chamamos de realidade. Aceitei meu corpo, que foi presente de Deus pro meu espírito habitar. Espírito esse que saiu dEle.

A segunda vez que Deus falou comigo eu já não era mais criança, foi quando percebi que Deus não é religião e um bocado de regrinhas. Ele está onde há luz. E Ele deixou luz em tudo. Tomei um chá com Ele. Meu espírito saiu do corpo e subiu. Contemplei a Glória divina e senti meu espírito ir alto e mais alto. Eu vi a Deus e diferente do que minha mãe dizia, é como olhar pro Sol, mas os olhos não ardem. E Ele me disse: você é um anjo. Você é luz! Você está pronta!

Mateus 5:8 “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.”