
O dia desaparecia e a “hora da fraqueza” (ou seria hora da loucuragem?), descrita por Camus, se aproximava. O bairro estava sem energia. Max andou algumas quadras e viu guardas de trânsito trabalhando em função dos semáforos desligados. Queria ler um pouco e em casa seria impossível, precisava sair, melhor seria a solidão de um local público com carros passando sem que se dessem conta dele, talvez numa praça que ainda estivesse iluminada. No limiar da subida viu a cidade ao fundo.
Ficou observando a noite e percebeu que as nuvens logo se tornariam vermelhas. Mas talvez seria perigoso ficar lendo na rua, perdido, alvo fácil para pequenos ladrões viciados, com facas sujas e enferrujadas. Talvez um ou outro de revólver 22 velho na cinta.
Viu a estação tubo que estava à sua direita; brilhava como uma grossa lâmpada fluorescente. Os pontos escuros no interior eram passageiros em espera. Começou a andar na direção à estação, poderia pegar um coletivo e ler por longo trajeto sem rumo, sentado a sós com o pequeno livro. Ao invés de pegar um ônibus expresso na estação, pensou em tomar um de linha convencional, no ponto do outro lado da rua; estaria quase vazio e com certeza haveria onde sentar.
Viu que o ônibus verde vinha a certa distância. Correu o mais rápido que pôde e fez sinais com os braços. Conseguiu chegar ao ponto um pouco antes e aguardou, mas o coletivo não parou, apenas tinha diminuído a velocidade. Max foi invadido por um ódio súbito, descontrolado (mas da onde vinha isso? ninguém até hoje sabe, foi violência tão gratuita!).
Golpeou a lataria do ônibus com os punhos cerrados e gritou como se grita a um cavalo: OUOUOUOUOUOU!!!! O condutor se obrigou a parar. As pancadas provocaram um barulho intenso no interior do veículo. Max correu cerca de dez metros até a porta e foi recebido pelo ar nervoso do motorista. “Por que não deu sinal, ôôô maluco!?”, gritou condutor com a cabeça completamente vermelha (as batidas na lataria ainda ecoavam dentro dela). “Acorda imbecil! Não acenei várias vezes? Que mais queria que eu fizesse?!” disparou Max. Então o motorista disse uma série de coisas ininteligíveis, intercaladas por palavrões que ficavam marcados no ar.
Max não entendia mais nada, não ouvia mais nada, apenas sons surdos na porta de cada ouvido (zumbidos que afloravam em cada choque de nervos). “VAI SE FODER FILHO DA PUTA! Acorde e dirija seu merda, seu filho da puta!”, disse quase sem perceber que palavras saiam da boca. “Dirija e pronto!”, exclamou por último.
O motorista calou-se, admirado com a violência verbal. Max passou a catraca sob o olhar fumegante do cobrador. A veia do lado direito da testa pulsava a ponto de quase romper. Alguns passos à frente, ouviu cobrador e motorista o xingando. Leu os lábios do condutor ao dizer para o cobrador que o avisasse, apertando duas vezes a campainha, quando Max fosse descer. No espelho frontal, acima do para-brisa, viu o motorista piscar e o colega assentir com a cabeça em seguida. Ficou claro que ia ter troco.
Era chegada a hora da loucura, uma única hora entre 24. A maioria dos que sofrem diariamente desta hora maldita acabam como heróis violentos (que salvam o dia, mas matam algumas criancinhas inocentes no caminho), ou são condenados a ir para um hospício; talvez morram queimados criminosamente, amarrados na cama de um quarto perto da enfermaria. Num dos 200 e poucos quartos de um hospício metropolitano.
A hora chegou e não era pessoal. Nada contra as vítimas em si. Era mais uma daquelas situações classificadas de forma simplista como “hora e lugar errado”, (e tem coisa mais ridícula?).
A mente de Max foi sugada por um buraco negro. As batidas surdas em seus ouvidos inundavam a cabeça de uma névoa densa, mas, paradoxalmente, a visão do jovem maníaco ficou clara, via cada detalhe à frente com precisão inacreditável: a luz azulada do interior da nave, em contraste com a escuridão do bairro sem brilho, salientava a divisão das formas no espaço e o rapaz teve seu momento de iluminação.
O crime
Impulsionado por força desconhecida, Max, louco, sacou a caneta esferográfica de ponta fina que tinha no bolso (carregava por costume; fazia anotações nas bordas dos livros ou sublinhava citações). Com um único golpe, cravou metade da haste plástica no ouvido esquerdo do cobrador, que ainda olhava para o espelho a fechar seu conchavo com o motorista.
O homem nem teve tempo de gritar e Max arrancou o objeto para em seguida golpear o olho direito do cobrador, causando duas perfurações na cabeça, uma de cada lado do cérebro. Pulou a catraca de volta e começou a espancar o motorista que estava preso no cinto de segurança: era uma presa fácil e o caçador estava em fúria. A partir daí, nada via a não ser o sangue e queria mais e mais, parecia uma brincadeira. Agrediu o homem repetidas vezes na região da cabeça; deu impulso para trás e começou a pisoteá-lo. Colocou todo o peso do corpo no calcanhar para atingi-lo na região do tórax e do abdômen.
O ônibus, que ainda estava em movimento, perdeu a direção e bateu em uma árvore. Foi amortecido antes da colisão pelo barranco de terra do canteiro central da avenida. O motorista estava quase inconsciente e o motor do veículo ainda fazia barulho.
Max pegou uma chave inglesa que estava no painel e bateu três vezes contra a face do motorista, abrindo um buraco profundo acima do nariz. O jovem ainda não havia caído na real. Olhou para os passageiros horrorizados, mas seu olho estava sem foco. As pupilas tão dilatadas que as órbitas pareciam estar completamente negras. Sujo de sangue, viu seu livro no chão com a capa manchada por completo. O suor escorria na testa e estava arrepiado, lábios brancos e rosto pálido, tal qual um morto no caixão esperando ser posto gaveta adentro. Parecia estar dentro de um sonho terrível. Perguntou a todos em voz alta, por duas vezes, quase gritando: “O que aconteceu aqui!?”. Enfim estava voltando a si, mas então caiu no chão desmaiado.
Por um minuto ninguém se mexeu dentro do ônibus; estavam em choque. Mas Max levantou-se inesperadamente. Agora tinha uma expressão de determinação no rosto e todos tremeram quando ele sorriu. Um meio sorriso, um sorriso escuro.
Lambeu os lábios, impulsionado pela impaciência, e apertou o botão que abria as portas para sair correndo na rua. Desapareceu em alguns segundos no bairro sem luz, antes mesmo que alguém conseguisse ligar para a emergência. Uns mais ao fundo do coletivo, nem sequer tinham entendido o que havia se passado naquele último instante e nenhuma das testemunhas mais a frente sabia quem era o assassino. Um desconhecido, sem qualquer tipo de identificação.
Mais tarde, Max foi classificado como “um jovem de aproximadamente um metro e setenta, pele clara, cabelos tingidos de vermelho, aparentando entre vinte e vinte e cinco anos. Uma mente doentia que agiu por motivo torpe, ou pior, sem motivo, a não ser os de uma pessoa perturbada. Provavelmente estava sob efeito de álcool ou drogas”. No dia seguinte houve protesto da classe dos motoristas e cobradores de ônibus da cidade, pedindo mais segurança. Max não foi encontrado.
por Jadson André.